O JOSÉ WILKER QUE EU CONHECI DE PERTO

Todos estão no noticiário da televisão falando de José Wilker.

Wilker era muito talentoso e extremamente inteligente. O que emocionava nele era justamente o seu talento. Mas não era uma pessoa de se expor a todos que conhecia. De abrir sua alma, seu coração. Não era um emotivo.

Os que vejo falarem com mais propriedade sobre o ator são os veteranos. E quando a repórter pede histórias pessoais, Eva Wilma, a rainha da sensibilidade, lembrou-se dos livros de poesia que ele levava e distribuía ao elenco em que atuaram.

Wilker era um homem reservado de alma. Trabalhamos juntos antes de ele debutar na TV. Tinha chegado do Ceará e já despontava como o mais brilhante ator de sua geração no Rio de Janeiro, depois de seu extraordinário desempenho em O arquiteto e o Imperador da Assíria, no Teatro Ipanema, de Ivan de Albuquerque e Rubens Corrêa, que lhes abriram a porta dos palcos nacionais, do estrelato e até da casa, pois morava num apartamento de Rubens.

O ano era 1971. A peça era A Mãe, de Stanisław Ignacy Witkiewicz, e, para dirigi-la, a produtora e protagonista do espetáculo, Tereza Rachel, importou o maior diretor da época na França, Claude Régy, que assinou a montagem no Théâtre Récamier, em Paris, assistida por Tereza com Madeleine Renaud no papel título.

Wilker foi convidado para protagonista masculino, o “filho da mãe”. Para o terceiro principal papel da peça, a noiva de Wilker, vivida na montagem francesa por Delphine Seyrig, foram abertos testes. Candidataram-se todas as jovens atrizes de 20 anos do país. Tive a sorte de ser a escolhida.

Grande elenco, grande experiência, grandes amigos. Foi também a estreia no Rio de Janeiro de Aderbal Freire como ator, hoje um grande diretor.

Tivemos todos um contato muito próximo. Foram meses de ensaios intensos. Naqueles anos, os ensaios estendiam-se por quatro, cinco, às vezes seis meses.

Ensaiávamos no clube judaico da Rua das Laranjeiras, Wilker costumava beber antes do ensaio. Nos intervalos. E depois. Acho que para encarar o diretor francês, nada fácil. Fase da pobreza, a pedida do ator era conhaque Dreher. Chegava, pedia um cálice no bar do clube e virava num gole.

Wilker gostava de falar por metáforas, hipérboles, parábolas. Inteligentíssimo e complicadíssimo. Antes que o diretor o confundisse, ele, que não falava francês, o pôs no bolso.

Jogava um charme louco sobre Claude, que acabou literalmente apaixonado pelo ator, que lhe escorria entre os dedos, num jogo de sedução de gato e rato, de ironia, o que não passava, eu acho, de uma estratégia de Wilker para desempenhar seu personagem sem ser desestabilizado pelo diretor.

Bom que se saiba que, através de sua técnica angustiada e angustiante de direção, Claude Régy levou Tereza Rachel praticamente ao paroxismo de desespero.

No final, o diretor jogou-nos as duas no chão do palco, esfomeadas, comendo macarrão frio catado no piso, descabeladas, envergonhadas, sem blusa, irreconhecíveis, com os rostos cobertos por máscaras brancas.

Apenas Wilker se salvava em cena. Belíssimo, de malha preta, corpo de toureiro, make up de Nureiev. Ah, Wilker sabido!

Ali aprendi uma lição: José Wilker era um sobrevivente em qualquer circunstância – da aridez nordestina à angústia de um diretor, que não conseguia transmitir o que pretendia a um elenco em que poucos entendiam o idioma que ele falava.

O espetáculo era lindo. Os cenário e figurinos de Joel de Carvalho, maravilhosos. A direção, muito elogiada. Nossos desempenhos, idem. Mas, quanto sofrimento!

Wilker, o inteligentíssimo Wilker, o extra-talentoso, que entendia das manhas dos artistas manhosos, manteve-se blindado e indestrutível, esteve hors concours em cena!

Acho que foi o único ator no mundo que conseguiu dar a volta no diretor francês com sua tática de desestabilização, que levou algumas atrizes famosas aos consultórios de psicanálise.

Naqueles anos, o carisma de um grande ator não era o Ter. Era o Ser.  José Wilker exercia com mérito o carisma da sua real pobreza. Vestia a emblemática e surrada roupa caqui, meio à la Guevara. A pé, peregrinava sua legítima falta de dinheiro pela noite boêmia teatral, do Leme à Galeria Menescal, em Copacabana, e depois até Ipanema. Ou de ônibus.  Ah, como era bonito ser artista pobre e revolucionário!

Era namorador. Comentava-se dele que as namoradas no mundo artístico eram passageiras, pois cortejava mítica noiva secreta, em casa de quem almoçava nos fins de semana, mesa posta, aliança no dedo direito, família em volta, pequena burguesia. Diziam que, com ela, e só com ela, Wilker iria um dia se casar.

E assim foi seu primeiro casamento, com a noiva psicóloga, alheia ao mundo artístico.

Isso só conto para ilustrar que havia dois José Wilker. Aquele impulsivo, transgressor, iconoclasta, revolucionário, que falava bonito, quase discursando. Aquele pequeno burguês, com ambições de prosperidade.

Os dois José Wilker se fundiram, a partir de seu ingresso na televisão, que lhe deu a oportunidade e o palco para ser plenamente talentoso e se tornar um ator famoso nacionalmente, constituir família – algumas famílias – ter as casas amplas, com todas as estantes para todos os seus livros, fazer todos os grandes personagens que sempre quis, ser múltiplo, preocupar-se com a memória das nossas artes audiovisuais.

Já famoso, eu colunista escrevendo sobre TV, publiquei alguma incorreção o envolvendo. Em vez de me interpelar por telefone, pois nos conhecíamos bem, escreveu-me uma carta delicada. Fiz o reparo, assumindo o meu erro com ênfase.

Revolucionário em sua perspectiva da memória artística. Ordinário em suas ambições humanas de conforto, família.

Não foi um qualquer. Antes de tudo, um reflexivo. Preocupou-se com a pesquisa das artes.

Se eu fosse a Globo, catalogava sua biblioteca, sua videoteca, a discoteca, e lhes dava um nobre destino, para consulta orientada e franqueada. Realizava o último sonho do José Wilker.

18 ideias sobre “O JOSÉ WILKER QUE EU CONHECI DE PERTO

  1. Hilde, sua forma de contar, desnuda, se mostra, encanta, envolve, conta intensamente muito do q queriamos saber, ver e ler vc contar do Wilker e bom demais. Vc e incrivel, obrigada. Jose Wilker se foi, grande perda, grande ator, mais q ator, grande cearence, q muito nos deu e muito deixou em nossas lembrancas, nos presenteando com sua arte e graca.

  2. Perfeito! Disse tudo que queríamos. Alias, NINGUÉM mencionou o casamento com a psicóloga. Por que será? Soh mencionaram as atrizes…
    Psicóloga de família católica tradicional, na qual havia ate freiras. A Irma Rosario, por exemplo…
    Como sempre, esse irreverente causando polemicas… Ateh na idade…cada site e jornal, publicou uma diferente…
    Ze, o misterioso…

  3. Belíssimo texto! As palavras sensíveis e adequadas no momento certo. Pena o acontecimento da morte de Wilker.

  4. Lindo o que vc escreve. Lindo o que lhe inspira. E lindo o Zé Wilker, o meu primeiro ícone de sensualidade na minha adolescência, quando todas suspiravam por Paulo Ricardo do RPM…

  5. Parabéns pela profunda e poética descrição de um dos profissionais da arte brasileira que deixou uma linda contribuição, em tempos em que a televisão foi uma das principais portas de acesso ao mundo da arte, à ampla maioria do povo brasileiro. Perdemos muito!

  6. Como é bom ver este streap tease de despir realidades…
    Parabéns pela concreta sensibilidade de contar as verdades.

  7. é sempre um prazer ler o que vc escreve Hilde! Bom saber esse lado desse grande ator ….vamos sentir saudades! bjo

  8. Hilde, lindo artigo. Tambem tive oportunidade durante um tempo em minha vida de conviver com o Wilker. Me lembro muito bem de um aniversario, em que uma amiga tambem já falecida me ofereceu uma festa linda a beira da piscina com o Rio aos nossos pés. Ele ao chegar, me presenteou e cochichou no meu ouvido: ” que privilegio uma festa dessas para comemorar os seus 16 anos”. Claro, não tinha 16 anos mas era bem mais nova que toda a turma. Continuamos nossa amizade por mais alguns anos, ele sempre presenteando com DVDS , de A Regra do Jogo , de Renoir, passando por Bach e George Lucas. Passamos por Reveillons em Paris com as crianças, e sinto muita falta daquela época de minha vida. Uma grande perda.

  9. Oi Hilde , lindo artigo. Tambem tenho uma experiencia pessoal com o Wilker e lembro me muito bem quando uma amiga me ofereceu uma linda festa de aniversario, com o Rio aos nossos pes. Wilker como parte da nossa turma da epoca foi. Me disse ao ouvido que maravilha, ter uma festa dessa para comemorar os 16 anos. Claro, não tinha 16 anos,mas era a mais nova da turma. Ele anteviu o privilegio daquela comemoração. Me deu muitos dvds e me provocou . Desde ” A Regra do Jogo” de Renoir, passando por Bach, George Lucas. E sinto muita falta desta epoca tão feliz da minha vida.

  10. Por Deus Hilde, que coisa mais fantástica e maravilhosa a respeito do Wilker que acabo de ler!!! Ele no auge da atuação durante minha adolescência era o ator dos nossos sonhos. Pergunto porque tudo isso não pode fazer parte de um documentário exclusivo sobre ele? Como fazer acontecer? Parabéns Hilde, você é realmente algo mais! Abraço grande e nunca, jamais deixe de colocar sua crítica no ar, seja ela referente ao que quer que seja!!!

  11. Querida Amiga Hilde
    Quando me for desta para outros mundos, outra galáxia, por favor escreva também. A Exposição sobre a ZuZu aflorou todo o seu talento,sua sensibilidade,nem me atrevo mais a chama-la de Colunista. Virou uma poetisa, cujo teclado transforma seus queridos amigos em verdadeiros Semi Deuses.
    Um abraço afetuoso em você e família

    • Na casa de minha família ficou uma foto desde 1975 do wilker recortada de uma revista e colocada num quadro feito de plático e quem perguntava pra nós em São Borja -Rs, quem era aquele homem nos sempre disíamos brincando é nosso irmão mais velho e ele conviveu conosco por muitoa anos.

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