Com aval de Clarice, Drummond, Bárbara, Secchin, eu lhes apresento o novo acadêmico carioca: Sérgio Fonta

O auditório do último andar do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro fervilhava, já praticamente lotado 20 minutos antes da hora marcada para a solenidade. Subi no elevador com dois imortais, Antonio Carlos Secchin e o bom amigo Murilo Mello Filho, ainda mais elegante e mais magro, de paletó pérola ajustado. Era a posse do escritor ator Sérgio Fonta na Academia Carioca de Letras, sucedendo à vaga do escritor astrônomo Ronaldo Mourão.

Imortais de academias várias em todas as direções. Eu tinha sentado à minha direita o Arnaldo Niskier, da ABL, e à esquerda o Mello Filho, que contabiliza cinco colares acadêmicos. Com sua postura ereta, coluna sempre rija, Murilo tem vigor físico e intelectual para portar quantos colares acadêmicos lhe destinem.

Piñon, Domício, Torres, Sandroni, Camila Amado, Ana Callado, José Dias, Mendonça Telles, Tanussi Cardoso, o ir e vir, o chegar e o procurar lugar de personalidades da vida cultural brasileira é grande. Não havendo mais cadeira na plateia, elas se acomodam nas reservadas aos imortais da casa. Afinal, todos pertencem a alguma academia, mesmo que não à Carioca de Letras, cujo presidente, Ricardo Cravo Albin, está atrasado.

A dramaturga Miriam Halfin, membro da Academia Carioca de Letras, toma a iniciativa de abrir os trabalhos. E assim compõe-se a mesa com enorme prestígio: o presidente da Academia Brasileira de Letras, Geraldo Holanda Cavacanti, o presidente do PEN Clube do Brasil, Cláudio Aguiar, e o presidente do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, anfitrião de todos, Arno Wheling.

O acadêmico Antonio Carlos Secchin faz a saudação ao novo membro. Traça o perfil do jovem talentoso e persistente, que teve em Clarice Lispector a primeira a estimular sua produção literária. Depois veio, imaginem, Carlos Drummond de Andrade. E ainda houve a passagem memorável com Rubem Braga, sabiá que não dava um pio, mas que, com Sérgio, além de piar numa entrevista, presenteou com vários livros de sua Editora Sabiá. Conta Secchin de outros exigentes admiradores da obra de Fonta, como a já saudosa Bárbara Heliodora.

Uma fala leve, colorida, cumprindo amplamente seu propósito, com o brilhantismo próprio do mestre, e que o presidente Albin, da Academia Carioca, chega a tempo de ouvir e aplaudir, justificando seu atraso com o trânsito impraticável do nosso Centro da cidade.

Noite esplendorosa. Cadeiras extras. Silêncio. Mesmo os de pé, no corredor, não se movem, magnetizados, enquanto o novo acadêmico Sérgio Fonta faz seu discurso.

“Não foi um discurso, foi uma poesia”, definiu depois Rejane, mulher do Domício Proença.

Tentei destacar aqui alguns trechos do discurso para vocês, mas é tudo tão bem concatenado, que achei melhor postar na íntegra, abaixo, para quem quiser se deleitar com a leitura boa. Os aplausos vigorosos da plateia da melhor qualidade, ao final do speech, recomendam.

Afinal, lá também estavam os escritores Gilberto Mendonça Telles, Nelson Mello e Souza, Sylvio Lago, Laura Sandroni, Denise Emmer, Marcus Vinicius Quiroga, Godofredo da Silva Telles, Suzana Vargas, Roberto Athayde, Maria Inez Barros de Almeida, Haroldo Costa, a editora Maria Amélia Mello, as atrizes Suzana Faini, Thereza Amayo, Maria Pompeu e Jalusa Barcellos;  o Secretário-Geral da Academia Brasileira de Arte, Victorino Chermont de Miranda, representantes da Funarte, da Sbat, do Instituto Cultural Chiquinha Gonzaga, do Conselho Regional de Administração do Rio de Janeiro, da Academia Luso-Brasileira e da União Brasileira de Escritores.

Com tamanho aval, acredito que vocês lerão, sim, o discurso inteirinho do Fonta.

DISCURSO DE POSSE DE SERGIO FONTA NA ACADEMIA CARIOCA DE LETRAS

Cadeira 14  – Patrono: D. Pedro II  – Sucessão a Ronaldo Rogério de Freitas Mourão

Posse:  Sala Pedro Calmon  –   9 de abril de 2015

Exmo. Sr. Presidente da Academia Carioca de Letras, Ricardo Cravo Albin, ilustres membros que compõem esta Mesa, Srs. Acadêmicos e Acadêmicas que me honram com suas presenças, meus confrades e confreiras da Academia Carioca de Letras, familiares de Ronaldo Rogério de Freitas Mourão, minha mãe, meu irmão, minha família e meus amigos, minhas senhoras e meus senhores, meus colegas do teatro brasileiro – vejo aqui atores e atrizes, autores, críticos, diretores, produtores, cenógrafos, são a minha tribo. Não posso deixar de registrar também a gentileza do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, ao abrir suas portas para esta cerimônia.

E meu agradecimento comovido ao acadêmico, professor, crítico e poeta Antonio Carlos Secchin por sua recepção. Vocês sabem que é uma temeridade falar depois dele, pois seus discursos são sempre brilhantes…

Muito obrigado, Secchin, por suas palavras tão generosas. Igualmente generosos foram aqueles acadêmicos que acolheram na primeira hora a minha candidatura à sucessão de Ronaldo Mourão , plenos de entusiasmo, a incentivar uma caminhada que, em pouco tempo e para minha surpresa, se mostrava viva, estimulante, era um caminho sem volta e promissor, com apoios fortes e solidários vindos de perto e também de longe, a desenhar meus passos de carioca para a Carioca, alguns velhos amigos, outros amigos novos, meus guerreiros e guerreiras – sim, guerreiras, pois elas também estavam lá com suas vozes solidárias e presentes -, a todos e todas que me acolheram com seus votos no início ou no percurso, sempre a minha gratidão.

Mas voltemos nossos olhos para uma outra dimensão. Recordemos os antigos sonhos que envolvem a imaginação de toda criança, quando ouve histórias fantásticas a respeito de mundos que não conhece, habitados por fadas, feiticeiras, reis, príncipes e… magos. Recordemos os contos que começam com aquela frase-chave: “Era uma vez”. Assim eles começavam e assim continuarão pela existência de todos os que ainda estão por vir.

Pois bem…

Senhoras e senhores, era uma vez um telescópio chamado… Alma. Alguns talvez questionem como é possível um telescópio, fabricado pela mão humana, chamar-se alma? No entanto, a verdade é que ele existe e tem o nome de alma, tanto naquele instrumento científico desenhado e projetado pelo homem, quanto naquele homem desenhado e projetado pela vida para descobrir os segredos do universo. O primeiro, aquele de longo alcance, que investiga o céu, teve imenso avanço neste século XXI e um novo modelo foi criado com uma potência nunca vista. Seu nome é mesmo alma, iniciais de Atacama Large Millímeter Array. A-L-M-A. Fica, evidentemente, no deserto de Atacama, no Chile, e é o maior observatório astronômico do mundo, um telescópio de última geração que estuda a radiação produzida por alguns dos objetos mais frios do Universo. No meio interestelar, estes objetos são provenientes de imensas nuvens moleculares com temperaturas de algumas dezenas de graus acima do zero absoluto e também das primeiras e mais longínquas galáxias. Quanta minúcia para encobrir mistérios do Universo… Pois o ALMA os descobre. O nosso Alma também. O nosso telescópio chamado Alma é brasileiro, nascido no Rio de Janeiro, com coração carioca e cabeça nas estrelas. Hoje, mesmo distante da Terra, ele é, foi e continuará sendo chamado de Alma, pois foi com alma que Ronaldo Rogério de Freitas Mourão estudou o Universo. Uma alma repleta de brilhantismo, inteligência e ciência na mais pura essência desta palavra e sobre a qual falaremos em breve. Antes, porém, giremos o telescópio da vida e miremos no túnel do tempo, daqui ao começo de uma Cadeira de no 14, da Academia Carioca de Letras. Quem vemos lá…? O poeta Álvaro Faria, os escritores Paulo Coelho Neto e J. Paulo Medeyros e, meu Deus, um imperador! Ele mesmo, o Imperador D. Pedro II, patrono da Cadeira 14. No entanto, na sutil neblina do passado, ao garimpar o caleidoscópio do tempo, descobrimos o nome de Luis Francisco da Veiga, não lembrado em discursos de posse anteriores, mas, ele, sim, o patrono original da Cadeira 14. Antes de Pedro II. Mais adiante, entenderemos por que. Ao contrário do habitual, quando o empossando fala em ordem cronológica de seus antecessores até chegar à vida e à obra daquele a quem sucede, faremos um pouco diferente. Iniciemos esta rápida viagem, girando o telescópio para trás, um pouco antes de Ronaldo, até chegar à origem de tudo, de seu patrono, e retornar. Álvaro Faria, a quem Ronaldo Mourão sucedeu, além de jornalista, era um trovador. Isso fica bastante claro em alguns livros de sua vasta produção:

Trevo de trovas, a antologia Trovadores brasileiros e um de seus últimos volumes, lançado em 1980, com o simpático título de Troviela. Publica também coletâneas de contos, crônicas, conferências literárias e discursos.

Hoje, que tenho a alegria e o orgulho de ingressar na Academia Carioca de Letras justamente nas comemorações dos 450 anos do Rio de Janeiro, vejo que Álvaro Faria recebeu a Medalha Pereira Passos, comemorativa do 4º Centenário da fundação de nossa cidade, uma feliz coincidência e um vínculo seu com os dias festivos deste 2015 tão carioca.

Álvaro Faria sucede a Paulo Coelho Netto, cujo pai não é outro senão Henrique Maximiliano Coelho Netto, ou, simplesmente, Coelho Netto, autor de obras célebres na literatura e no teatro. Seu filho Paulo, nascido em Campinas, integra uma família de sete irmãos, entre eles João, o popular jogador Preguinho do Fluminense Football Club, e Violeta Coelho Netto, famosa cantora lírica. Deve ser um peso incomum carregar a marca de um pai ícone, seja em que setor for. Coincidência ou não, Paulo só estreia na literatura em 1942, quase dez anos após a morte de Coelho Netto. A partir daí publica perto de 20 livros, inclusive teatro, com a peça Metamorfose. No entanto, é ainda a presença do pai que o cerca. Além de novelas, contos e romances, escreve a biografia documentada de seu pai, os volumes Páginas escolhidas de Coelho Netto e Bibliografia de Coelho Netto. Era um polemista nato e mais uma vez a sombra paterna o envolve, pois no livro Silhuetas, defende a obra de Coelho Netto e ataca seus críticos com unhas e dentes. Escreve muito também sobre o Fluminense, sua paixão, e sobre discos voadores. Foi um dos mais respeitados ufologistas do país.

Paulo Coelho Netto sucede ao escritor J. Paulo Medeyros, ou Paulo de Medeyros, jornalista nascido em Belém, mas radicado no Rio, é um disputado colaborador da imprensa. Nos anos 1920 já escreve para os melhores jornais e revistas. Em seguida, muda-se para São Paulo, mas retorna definitivamente ao Rio após a Revolução de 30. Sem abandonar o jornalismo, transforma-se num bem sucedido contista, cronista, tradutor, historiador, crítico de artes plásticas e de música. Tem grande influência na aproximação Brasil-Argentina com sua tradução de Juan Facundo Quiroga e do primeiro volume da Coleção Brasileira de Autores Argentinos.

Como historiador produz trabalhos de expressão como o volume A missão do General Mitre no Brasil, comemorativo do centenário do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, aqui onde estamos agora, nesta cerimônia de posse. No discurso de saudação a Paulo de Medeyros, seu orador não esconde a emoção quanto ao resgate da figura de Mitre, “para mostrardes, ao fim, aos olhos curiosos do mundo, as mãos honradas de Pedro 2º estreitarem as mãos gloriosas de Mitre, nos salões do Paço de São Cristóvão, na radiosa manhã de 17 de agosto de 1872”. Bem, por um inesperado atalho, chegamos a Pedro II. Mas… um momento: graças aos alfarrábios cujas comportas nos foram abertas, a nosso pedido, pela secretária da Carioca, Maria José, a Peneluc, pinçamos o nome de Luis Francisco da Veiga, o Luis da Veiga, primeiro patrono da Cadeira 14, perdido no limbo do tempo.

Uma parte da explicação está claramente exposta no portal da própria ACL, em sua página na internet. O primeiro nome da Academia Carioca de Letras, fundada em 1926, foi Academia Pedro II e teve sua última sessão pública com este nome três anos depois, no dia 2 de dezembro, quando se comemorava o centésimo quarto aniversário do imperador. A mudança, como conta Othon Costa, presidente no cinqüentenário de fundação da Academia, não teve cunho político e ficou a promessa de preservar a memória do grande monarca dando seu nome para uma das Cadeiras. A escolhida foi, justo, a de no 14. O nome de D. Pedro II legitima qualquer modificação. Mas não se pode colocar Luis da Veiga como alguém que nunca existiu. Segundo Costa, Veiga era uma pessoa de gênio difícil e, trabalhando sob a chefia de Machado de Assis no Ministério da Agricultura, teve uma séria altercação com o genial escritor, insultando-o, fato deplorável. No entanto, faz-se necessário que fiquemos acima da discórdia e ao lado da História. Nascido em 1834 e morto em 1899, o nome de Veiga aparece na oração de saudação feita a Paulo de Medeyros como um jornalista combativo. Veiga escreve também a obra O primeiro reinado e, na Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin, em uma edição de 1863, também aparece seu nome como o autor da introdução ao livro Cartas chilenas, obra atribuída a Tomás Antonio Gonzaga.

A partir deste momento Luis da Veiga encontra seu espaço na memória carioca e, quem sabe, agora sereno, oferece sua cadeira-trono ao monarca que tem uma digna história de vida e reina, para sempre, como patrono de uma Cadeira de no 14.

Não vamos tecer aqui nenhum extenso painel histórico sobre a biografia de D. Pedro II, já por demais conhecida. Vamos nos deter na figura humana, no homem dos livros, no panorama teatral de sua época e na sua paixão pelos… astros. Sim, pelos segredos do céu. Exatamente como Ronaldo Mourão.

É um fardo ser declarado imperador aos cinco anos de idade. Significa perder a infância, possivelmente a adolescência e ser adulto num rosto em que sorrir não é fácil tarefa. Alguém conhece alguma foto ou pintura de D. Pedro II sorrindo? Embora se diga, algumas vezes, que ele esteve no poder durante 58 anos, somadas as datas da abdicação de seu pai, em 1831, até sua deposição, em 1889, é claro que Pedro só assumiu verdadeiramente o império e a liderança por volta dos 21 anos, já mais dono de si mesmo. Mas o sofrimento sombreará sua vida com frequência. Pedro nasce em 1825, sua mãe, a Imperatriz Leopoldina, morre em 1826, seu pai casa-se novamente em 1829, abdica dois anos depois e parte para Portugal. Seu mosaico de perdas não para aí: quando lhe arranjam um casamento com uma princesa europeia que ele sequer conhecia – como era comum nos grandes reinados daquele tempo – para convencê-lo, foi-lhe mostrada uma pintura de Rugendas com a imagem de uma suave e linda jovem. Entusiasmado, Pedro aguarda com ansiedade a Princesa Teresa Cristina de Bourbon-Duas Sicílias, mas, ao vê-la, a tela do artista alemão desprega-se da moldura e cai a seus pés: sua futura esposa era o oposto do que ele vira no quadro. Rugendas talvez tenha sido, sem querer, o precursor do photoshop… Com tutor e aia a dar-lhe educação e estudo noite e dia, a preparação do Príncipe Imperial para Imperador do Brasil foi dura. Em compensação, Pedro é um leitor contumaz, absorve cultura e conhecimento, chega a falar quatorze línguas, entre elas grego, árabe, hebraico, chinês e tupi. Era chamado por José de Alencar de o “Augusto Protetor das Letras” Mas o estigma do sofrimento continua a acompanhar Pedro II: com Teresa Cristina teve cinco filhos, um deles a Princesa Isabel, mas perdeu dois, justamente os homens, o que o deixa arrasado para sempre. Mas eis que entra em sua vida um amor à margem: embora continuasse casado, mantém um relacionamento de trinta anos com Luísa Margarida de Barros Portugal, a Condessa de Barral. Há um livro bastante completo desta personagem concebido pela historiadora Mary Del Priore, recém-eleita para a Academia Carioca de Letras.

Ao começar a exercer o poder, posiciona-se contrário à escravidão, é um monarca discreto, justo e trabalhador, qualidades raríssimas no mercado político de hoje em dia. E mais: procura indicar para cargos políticos figuras de real valor e também combate a corrupção. Não é incrível? Seria hoje matéria para o programa “Fantástico”, da TV Globo… Embora tenha enfrentado importantes conflitos políticos, entre eles a Guerra do Paraguai, é um homem da paz, sabe amar seu povo e sua terra, é extremamente popular e querido. Amante das artes e da ciência, curioso pelas novidades tecnológicas de seu tempo, é o primeiro brasileiro a tirar uma fotografia. Convive com Nietzsche, Victor Hugo, Alexandre Herculano, corresponde-se com Wagner, Pasteur, Graham Bell. Durante seu reinado são criados o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e o Colégio Pedro II, ambos vivos e sólidos até hoje. Sempre prestigia também as iniciativas no segmento cênico, estimula o surgimento de vários teatros pelo Brasil, comparece a muitas estréias, frequenta salas também em outras cidades. E também patrocina espetáculos – sem que existisse nenhuma Lei Rouanet – como a peça A confederação dos Tamoios, de Gonçalves Dias, em 1851.

Com a proclamação da República, embora venerado pela população, é deposto sem reação, declarando-se cansado e com uma missão já cumprida. Exila-se primeiro no Tejo e Porto, em Portugal, depois em Paris, onde vive com poucos recursos e morre, aos 66 anos, a 5 de dezembro de 1891. Para 2016 há um atraente projeto de cinema: baseado em escritos do acadêmico José Murilo de Carvalho, o também acadêmico e cineasta

Nelson Pereira dos Santos planeja filmar a vida de D. Pedro II. Vocês já imaginaram que maravilha vai ser isso, com tantos personagens arrebatadores, romances secretos, guerras, golpes, um rei de personalidade singular, com cenas vigorosas ou delicadamente humanas?

Alguns anos antes, ainda reinando no Brasil, D. Pedro II mandou construir um observatório astronômico em São Cristóvão, dirigido pelo cientista Luis Cruls. Muitas vezes durante a noite tomava assento na carruagem real, parava em frente à cúpula do observatório, batia em sua porta e Cruls gritava lá de dentro, interrompendo o trabalho: “- Quem é”? E o imperador respondia com simplicidade e humildemente: “- Luis, aqui é o Pedro…”. Era apenas o Pedro. Em breve, nos melhores cinemas do Brasil.

Giremos novamente e pela última vez este telescópio de longuíssimo alcance, que atravessa a memória, a história e os sentimentos. Posicionemos este instrumento potente num despojado terraço, diante de uma imensa noite clara. Estamos em 25 de maio de 1935, data que marca o nascimento de Ronaldo Mourão. Antes de ser o cientista excepcional, louvado nas mais importantes cátedras do Brasil e da Europa, Mourão, claro, foi criança e nele já moravam a curiosidade e o fascínio por tudo aquilo que transitava pelos céus. Na excelente entrevista realizada, em 2011, pelo escritor e atual presidente do PEN Clube do Brasil, Cláudio Aguiar, para o portal daquela entidade, fica-se sabendo que o pequeno Ronaldo, aos sete anos de idade, a cada novo cometa anunciado, pedia que sua mãe telefonasse para o Observatório Nacional a fim de saber a que horas o cometa apareceria, qual era a sua posição no céu e qual o melhor local para observá-lo . Para Ronaldo Mourão esta vocação sempre foi clara como a via láctea.

Alguns anos após pedir à mãe que ligasse para o Observatório, houve um escritor, conhecido e admirado por todos, na época com um cargo na Casa Civil do então Palácio do Governo, no Catete, que percebeu o diferencial daquele jovem talentoso e resolveu ajudá-lo para uma nomeação como astrônomo-auxiliar do mesmo Observatório. Para isso, este escritor contou com a colaboração de um presidente. Foi assim que o romancista e acadêmico Josué Montello, em 1956, escreveu ao seu amigo Juscelino Kubitschek o seguinte bilhete: “Meu caro Presidente. Este pedido de nomeação de um astrônomo interino sou eu que lhe faço, para ajudar um jovem de dezoito anos que é, no presente, uma das maiores vocações científicas do Brasil. Aos 20 anos, os títulos dele são os da lista em anexo. Vamos amparar esta vocação. O rapaz é pobre – pobre como nós fomos na idade dele. É um pedido que lhe faz o Josué Montello”. Esta foi a única nomeação feita por Juscelino naquele momento. O original deste bilhete, tempos depois, foi dado pelo próprio Montello a Mourão. Quem sabe, um dia, esta pequena preciosidade possa vir a fazer parte do acervo da Academia Carioca de Letras…?

É assim que Ronaldo Mourão pousa de vez no Observatório Nacional, onde, tempos depois, mora até morrer em casa construída especialmente para ele. Ali, no Observatório, inicia seus estudos ligados à astronomia esférica e fundamental, começa a enveredar por suas pesquisas e descobertas até chegar aos primeiros contatos com cientistas europeus e aprofundar os conhecimentos sobre as Estrelas Duplas, que viriam a ser uma de suas marcas registradas.

Fui até lá. Não às estrelas duplas, claro, mas ao Observatório Nacional… Queria sentir a atmosfera onde ele viveu. Fui a São Cristóvão em companhia de Marcelo Bello, o jovem que Ronaldo acolheu como filho, embora tenha tido outros de dois casamentos anteriores. Do final dos anos 1980 para cá, Marcelo foi seu filho de todas as horas, seu secretário, sua companhia em muitos eventos e palestras. E em minha ida ao Observatório, foi o meu guia. Chegamos à vasta área do Observatório que, por pouco, algumas décadas atrás, não foi engolida pela sanha imobiliária que queria transformá-la, em sua maior parte, num imenso condomínio de prédios. Na ocasião, Ronaldo combateu com vigor esta tentativa e venceu ao obter, por decreto oficial, que aquele local era “Patrimônio da Humanidade”. Dentro do terreno do Observatório, vi sua casa, hoje desativada. Ali, do lado de dentro da casa, com uma grande janela, subdivida por basculantes, Ronaldo estudava e escrevia, rodeado por uma imensidão de livros e também de cães, pois gostava de animais. Passeei em torno das inúmeras cúpulas onde, em duas delas, repousam dois telescópios ou, como são chamados por lá, lunetas equatoriais. Na Grande Luneta Equatorial, quase assustadora de tão grande com seus olhos de aço voltados para o céu, Ronaldo pesquisou ininterruptamente, desvendou mistérios, revelou segredos, compartilhou estrelas. Sua presença está em todos os lugares, inclusive no Museu de Astronomia e Ciências Afins, concebido e fundado por Ronaldo em 1985 e que ele fez questão de inaugurar num dia 8 de março para homenagear as mulheres. Em seu interior encontra-se um vitral reproduzindo a figura de “Urânia”, a deusa da Astronomia.

Nos anos 1960 têm início algumas de suas muitas viagens internacionais, já lidando, aqui no Brasil, com as novas tecnologias que iriam incorporar os computadores definitivamente aos cálculos da astronomia. Mas, antes mesmo de se formar, com apenas 17 anos, publica seus primeiros trabalhos na revista Ciência Popular. Posteriormente, recebe os títulos de Bacharel e Licenciado em Física pela Faculdade de Filosofia, Ciência e Letras, da UERJ, e, em 1967, ganha o título de doutor pela Universidade de Paris, com menção “Très Honorables”. Nesta época seus estudos já se concentram nas Estrelas Duplas e em corpos distantes do Sistema Solar.

São incontáveis suas contribuições para a astronomia, em especial no campo das estrelas duplas, dos asteróides, cometas e estudos das técnicas de astrometria fotográfica. Em 1971 descobre uma companheira invisível da estrela dupla visual Aitken 14, confirmada depois por renomados astrônomos europeus. Descobre também diversos asteróides e é o primeiro brasileiro a ter um deles com seu nome: o asteróide 2590, descoberto em 1980, batizado com o nome de Asteróide Mourão.

A partir de seu primeiro livro, seguem-se mais de 100 até o fim de sua vida, uma infinidade de artigos e mais de mil ensaios, o que demonstra sua operosidade, sua energia criativa, sua prodigalidade. Mourão elabora todos os verbetes sobre astronomia e astronáutica do Novo Dicionário da Língua Portuguesa, de Aurélio Buarque de Holanda, e da Enciclopédia Encarta, edição portuguesa da Microsoft, além de coordenar os setores de matemática e astronomia da Enciclopédia Mirador Internacional, publicada pela Enciclopédia Britânica do Brasil. Colabora para revistas e periódicos, entre eles Folha de S. Paulo, Jornal do Brasil, O Globo e o Jornal do Commercio. Trabalha também em rádio e televisão, sempre divulgando tudo que se relacione à Astronomia.

Entre as inúmeras entidades às quais pertenceu, foi membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, da Academia Luso-Brasileira de Letras, da Academia Brasileira de Filosofia, membro correspondente da Sociedade Geográfica de Lisboa e, por fim, em março de 2001, da Academia Carioca de Letras, na Cadeira no 14. Ganha inúmeros prêmios, como o Jabuti, na categoria Ensaios, com o livro Astronomia na época dos descobrimentos, e, em 2005, o título “Suprema Honra ao Mérito”, da Universidade Soka, de Tóquio, no Japão. É agraciado com várias comendas, entre elas a Medalha Tiradentes, a Medalha Luis Cruls (aquele de D. Pedro) e a Medalha Austregésilo de Athayde.

Não podemos deixar de ressaltar o intelectual que Mourão foi, além do astrônomo e ensaísta. Para a Revista da Academia Carioca de Letras, escreve diversos trabalhos. No número que comemora os 80 anos da ACL (2006), envia o artigo “A inteligência brasileira e a relatividade de Einstein nos anos 1920” e faz um balanço da pesquisa científica no Brasil desde as primeiras décadas do século XX. No ensaio “Ciência em Balzac”, sua última colaboração para a Revista, em 2013, já na gestão de Nelson Mello e Souza, discorre, em profundidade, sobre Honoré de Balzac.

E Ronaldo Mourão também teve seu “momento Urânia”, a deusa da Astronomia, como já dissemos há pouco, inspirando músicos como Almeida Prado em “Cartas celestes” e Maria Emília Mendonça em “Viagens interplanetárias”, ou poetas como Fernando Py, em “Os anéis de anti-universo”, e o eterno Carlos Drummond de Andrade, no texto “O céu”. Era um apaixonado por Júlio Verne e por poesia, campo em que, muitas vezes, trafega, seja num original de poesias suas que deixou inédito, seja em seu discurso de posse aqui na ACL, quando fez questão de citar poemas de seu antecessor, de Pedro II e de nossa confreira Marita Vinelli, seja em prefácios e apresentações de livros de poetas, como em A equação da noite, da poeta, musicista e astrofísica Denise Emmer– aqui presente -, quando afirma que “(…) poucos poetas, com exceção de Murilo Mendes e Joaquim Cardoso conseguiram em nossa língua esta associação entre o cosmo, a física e a matemática na transmissão de sentimentos às vezes tão abstratos como os próprios conceitos geométricos”. No livro Memórias profissionais de Ronaldo Mourão, em depoimento a Jorge Calife, falando sobre cometas e sobre a fantasia de pegar carona em uma sonda espacial, diz o nosso lírico matemático: “(…) Sobrevoando os mundos azuis de Urano e Netuno, começaríamos a penetrar no frio e na escuridão do espaço interestelar. Em Plutão olharíamos para trás e perceberíamos que o Sol se tornara apenas uma estrela muito brilhante, uma bolinha de luz encolhida, incapaz de nos fornecer qualquer calor. À nossa volta a Via-Láctea desenharia um arco de fosforência pálida, leitosa, marcando os contornos das nuvens de estrelas de nossa galáxia. Nesse ponto teríamos alcançado o nosso destino, o vazio gelado e negro da nuvem de cometas que cerca o nosso sistema solar”. Embora não se dissocie do profissional de astronomia, transparece sempre sua alma de poeta. É sempre o olhar que vem do espaço e se apropria da condição humana.

A verdade é que seria impossível, no âmbito de um discurso, concentrar todas as atividades, conquistas e vitórias da trajetória de Ronaldo Rogério de Freitas Mourão, nem que tivéssemos a força, a consistência e a dimensão de um asteróide…

Alguns talvez possam perguntar em qual esfera nos interligamos, ele, um cientista, um astrônomo, e eu, este escriba saltimbanco que vos fala. Pois, sim, por incrível que possa parecer, nos assemelhamos, com limpidez, em algum ponto luminoso de nossas profissões. Ele, na engenharia do universo, nós, na engenharia do palco, na engrenagem do sonho e de muitos universos, a identificar mistérios, a conviver com astros e estrelas, criadores da palavra e dos atos, de infinitos personagens. Ronaldo Mourão, além do escritor profícuo, era também um grande personagem, não só de sua própria história, mas também da persona que o caracterizava. Haveria alguém mais personagem que o astrônomo Ronaldo, perfeito no tipo sensível, humano, delicado e genuino, com suas suíças, seus cabelos longos e nevados em busca da próxima descoberta? Nós, autores e atores, e também os poetas, sabemos bem o que é isso. Nós, de certa forma, o entendíamos, secreta e docemente, como um mago. Não seria nenhum espanto se, na fantasia dos enredos, o imaginássemos com uma longa capa de cetim às costas, coalhada de pequenas luas, um chapéu em cone e uma vareta nas mãos a reger segredos que, num passe de mágica, se transformariam em mais uma estonteante revelação.

Ajustemos, por fim, o telescópio e foquemos em uma fulgurante estrela nunca vista antes e recém-chegada à luz do céu, desde 25 de julho de 2014. Ajustemos mais ainda o nosso ângulo de visão: agora, sim! Ali está Ronaldo Rogério de Freitas Mourão, de posse real do universo que ele tanto perscrutou, investigou, desvendou e… amou. Ali está ele, finalmente, senhor de seu espaço.

Muito obrigado.

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O novo acadêmico Sergio Fonta entre Nélida Piñon e Camila Amado

Carioca P S Fonta Abr 2015_0002

Fonta com Heloísa Vinadé e Antonio Gilberto, diretor de Artes Cênicas da Funarte

Carioca P S Fonta Abr 2015_0096 (1)

Com a amiga Suzana Faini, da sua “tribo” do teatro

Carioca P S Fonta Abr 2015_0044Haroldo Costa, o historiador Paulo Roberto Pereira e, atrás, os acadêmicos da ABL Arnaldo Niskier e Antonio Carlos Secchin,

2 ideias sobre “Com aval de Clarice, Drummond, Bárbara, Secchin, eu lhes apresento o novo acadêmico carioca: Sérgio Fonta

  1. HILDE, foi uma surpresa agradabilíssima saber que existia a ACL, eu não sabia, apesar de ter morado no Rio 11anos, dos quais 10 em Petrópolis e lá eu soube da APL e do IPH, mas pensava que por causa da ABL não existisse a Carioca.
    Infelizmente não li ainda nada do Imortal Sérgio Fonta, embora já tenha lido do Ronaldo Mourão e do Pedro II, não escritos, mas seus discursos, embora tenha ficado curiosíssimo do que se registrou nas Letras do Imortal Francisco José-Pedro II, para a ACL. Foi adorável ver minha Imortal preferida Nélida-ex-Presidenta e saber que Murilo Carvalho e Nelson Pereira vão fazer um filme do nosso último rei, outra curiosidade é saber aonde fica a ACL…no Castelo, basta o bairro(embora possa ver isso na web).
    Agradece com carinho Álvaro (não o Faria, o faz)Lins e Silva.

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