Ângela Gutierrez: a grandeza de uma colecionadora que reúne acervos preciosos e os doa ao povo brasileiro

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Chegando de Belo Horizonte… Minas são as minhas raízes. Lá estão minha família, as histórias que encantaram minha infância, as razões de minhas idiossincrasias atávicas.

Apesar de nascida, criada e vivida no Rio de Janeiro, é em Minas que encontro as explicações de mim, ranços de minhas esquisitices, remotos perfumes da formação de minha identidade. A família fechada, cerimoniosa e conservadora dos primos em Beagá, contrastando com as ruidosas amigas mineiras de mamãe, que tocavam ao violão Peixe Vivo e Tatu Bola, e davam risadas, contando as histórias de bastidores da corte de JK.

Ir a Belo Horizonte para mim é sempre um resgate de tudo isso. E as histórias do passado são projetadas em Cinemascope, quando tenho a sorte de encontrar um bom contador delas, como Ângelo Oswaldo, secretário de Cultura do Estado, que sabe muito de meus parentes, e se senta comigo, depois de um jantar de fidalgos, na quarta-feira passada, em casa de Ângela Gutierrez, e vai desfiando relatos sobre a prima-irmã de mamãe, Vanessa Netto, musa dos poetas e literatos de sua época – Murilo Rubião, Paulo Mendes Campos, Fernando Sabino, Otto Lara Resende, Helio Pellegrino, Sérvulo Tavares, Ezequiel Neves. Todos apaixonados por ela, eles se reuniam em boemias na casa de meu tio Oscar Netto, para entoar serenatas e compor versos, celebrando a Vanessa, até hoje inesquecível.

A musa Vanessa de tantos fãs, minha mãe pioneira da moda, Zuzu Angel, sua prima, Maria Helena Cardoso, autora do livro “Por onde andou meu coração”…  mulheres mineiras de minha família deixaram marcas fortes na história cultural das Gerais.

O mesmo digo daquela Ângela Gutierrez, que nos recebia naquela noite. Sua presença está impressa na cultura de Minas e do Brasil com tintas de paixão intensa, e que nunca se apagam, pelo colecionismo das artes antigas. Sejam elas oratórios, imagens sacras ou instrumentos de ofícios, que narram a trajetória de nosso povo – e do país – através do trabalho e da criatividade.

Tais instrumentos de ofícios, colecionados ao longo de 50 anos, inicialmente por Flávio Gutierrez, pai de Ângela, a quem ele presenteou em seus 15 anos com um tear do século 18 (vejam Ângela no painel de fotos com ele) “contaminando-a” para sempre com o amor pelas antiguidades..

Foi nessa ocasião que se repetiu, às avessas, na vida real, o encanto de um famoso conto de fadas sobre o sono eterno da princesinha que espetou o dedo no fuso de um tear, quando fez 15 anos. Se Ângela espetou o dedo no tear, não se sabe, mas, a partir de seu primeiro contato com ele, em vez de adormecer, ela despertou para o entusiasmo do colecionismo. Passou a reunir peças de arte e a seduzir, com seu charme imbatível, os “mateiros” (como são chamados os “garimpeiros” de tais tesouros pelo interior longínquos). Logo, os mateiros lhes vinham, dos quatro cantos de Minas Gerais, trazendo maravilhas. Até uma balança de pesar gente (escravos) do século 17, trouxeram. E “mini forminhas” de queijo do Serro, produzidas para as festas de casamento de outrora, em formatos de corações e outras gracinhas. E moringas de barro, as mais extraordinárias. Em todos os tamanho, formas e cores. E forminhas de doces de leite. E  telhas feitas “nas coxas” pelos escravos – com que criatividade! Em algumas, brotavam passarinhos – quanta belezura e ingenuidade!

Dos tropeiros, ela conseguiu resgatar tudinho: as capas de lã, as selas, as bolsas de couro e os jacás de palha com as mercadorias que transportavam, onde, dizia-se em sua época, eles “enfiavam o pé no jacá”, quando tomavam baita pileques.

As carrancas de madeira das canoas que subiam o Rio São Francisco. Carrancas raríssimas de pedra, que ficavam assustando os maus espíritos no porto –  e eu nem sabia que as de pedra existiam! O Jardim das Energias, com a roda de moer cana, puxadas pela parelha de bois; a roda d’água, que moía milho; a roda da energia eólica…

Tudo isso recheia os três andares de um majestoso e histórico prédio tombado da antiga Estação Ferroviária Central, no centro de Belo Horizonte.  Foi Ângela quem idealizou o  Museu de Artes e Ofícios de Belo Horizonte, fundado em 2005, e fiquei extremamente encantada com o que vi.

Atualmente, o acervo conta com mais de 2.200 peças, que representam vários ofícios cotidianos da nossa era pré-industrial. Através dele, é possível conhecer de maneira mais humana a nossa história, o nosso povo e o ‘saber fazer’ transmitido dos mestres aos seus aprendizes (coisa que mineiro ‘sabe fazer’ muito bem!).  A coleção conta com peças dos séculos XVII ao XX.

Os curtumes, as costureiras e rendeiras, os comerciantes, as mulheres do lar, o trabalhador da lavoura, os ferreiros… Uma farmácia antiga encontrada e remontada ali, inteirinha, com seus potes preciosos. Bem como uma ‘venda’, de muito antigamente, com os produtos, também “do tempo do ronca”, guardados nas embalagens, nos pacotes, nas latinhas, que são também antiguidades.

Os apetrechos dos dentistas de outrora, que seguiam itinerantes com seus equipamentos, motores, boticões e malinhas, de cidade em cidade, A poesia dos tempos passados revisitada. Os oleiros, sapateiros, alfaiates, as mulheres na sua “azáfama” cotidiana, com seus potes, suas gamelas, suas máquinas de costura de manivela… Estão todos ali representados de maneira sensível e bastante esclarecedora.

Diante de mim, criancinhas de uniformes escolares, aprendendo aquilo tudo, curiosas, absorvendo o passado e correndo pra lá e para cá, enquanto o metrô de BH desliza lotado com passageiros, sobre trilhos que correm ao fundo da sala de exibição, separado dela por uma parede de vidro. Afinal, o museu é numa antiga Estacão Ferroviária, trazida à vida pela extraordinária iniciativa museológica de Ângela. O projeto do arquiteto e museógrafo francês Pierre Catel mereceu da rainha Sofia prêmio pela importância na sua recuperação patrimonial e integração à comunidade. Que sensação extraordinária estar lá, e numa visita guiada pela própria mentora daquela maravilha!

No entanto, vocês querem saber o que é de fato extraordinário? O desprendimento da colecionadora, que doou todo este seu acervo precioso ao IPHAN, isto é, ao povo brasileiro.

Agora, Ângela parte para nova etapa e abre mão de gerir sozinha o Museu através do Instituto Flavio Gutierrez que preside, estabelecendo, desde junho passado, uma parceria com a FIEMG – Federação das Indústrias do Estado de Minas Gerais – visando à sustentabilidade na manutenção do Museu de Artes e Ofícios – MAO.

Enquanto por seu lado a FIEMG dá seu primeiro passo rumo a um próximo Museu da Indústria das Minas Gerais, a partir de uma visão acurada de futuro, com liderança, sonhos e metas de seu presidente, Olavo Machado Junior.

No site do Museu de Artes e Ofícios também é possível fazer uma visita virtual, com direito a áudio e detalhes das peças. Veja só que bacana: http://www.mao.org.br/conheca/visita-virtual/

Se estiver por Belo Horizonte, não deixe de conferir de pertinho essa riqueza de lugar. Reserve dois dias para isso. E sorva o prazer de ali estar, como eu fiz, e ainda estou revivendo os bons momentos.

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Peças do acervo do Museu de Artes e Ofícios

Obs.: O Museu de Artes e Ofícios é um dos três museus pensados, organizados e geridos por Ângela Gutierrez (o MAO, agora sob gestão da FIEMG). Há também o Museu dos Oratórios, em Ouro Preto, e o de Sant’Ana, em Tiradentes. Todas essas coleções extraordinárias, acervos únicos e admiráveis, foram doadas por ela ao IPHAN.

2 ideias sobre “Ângela Gutierrez: a grandeza de uma colecionadora que reúne acervos preciosos e os doa ao povo brasileiro

  1. MINAS É UM MUNDO , O MUNDO DA GENTE ………..QUEM VISITA NÃO ESQUECE JAMAIS . PARABÉNS HILDE PELO BLOG , TEMAS SEMPRE RELEVANTES E COM BOM GOSTO .

  2. Realmente é uma pessoa fantástica em todos aspectos:como ser humano,mãe, avó, filha,sobrinha,irmã, amiga,chefe etc, e cidadã ao doar todo acervo ao povo brasileiro.

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