Chega ao fim o casamento do Chanceler
Este governo Bolsonaro, tão pródigo em metáforas em torno de casamentos, acaba de ver esticar a corda de um enlace não metafórico, que já se rompeu: o casamento do Ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, e Maria Eduarda Seixas Corrêa.
Zuzu Angel, Crime e Castigo
Hildegard Angel
Com o título “Crime e Castigo”, a coluna de Ancelmo Góes, de O Globo, publicou hoje, 15/06/2020, que o Judiciário reconheceu o assassinato de Zuzu Angel, e caberá à União pagar uma indenização às suas filhas – eu e minha irmã, Ana Cristina – não cabendo mais recurso.
Sabemos que indenização alguma paga uma vida, compensa a ausência do afeto, da compreensão e dos cuidados que só podem ser proporcionados por uma mãe. E uma grande, imensa mãe, como foi Zuzu. No entanto, cansadas de ler nas referências à morte de mamãe quase sempre a mesma frase “acidente por causas desconhecidas”, minha irmã e eu decidimos buscar providência que pudesse dar um basta nessa insistência em desinformar.
A grande imprensa sabia, os jornalistas sabiam, os formadores de opinião sabiam, os artistas, os políticos, os empresários, os juristas, todos sabiam. Teses foram escritas a respeito, livro foi publicado, canção de Chico e Miltinho composta, filme, dramatizações na TV, balé, exposições várias, encenações, ruas com seu nome inauguradas, escolas, Túnel, monumentos, prêmios… Homenagens que, enternecida e para sempre, agradeço.
Até mesmo no atestado de óbito de Zuleika Angel Jones já consta, como causa mortis, o assassinato pelo Estado brasileiro. Todavia, basta ligeira pesquisa no Google, e lá está, na Wikipedia e em inúmeras outras referências à morte de Zuzu Angel, a frase: “acidente por causas desconhecidas”.
Sempre fiz por agradecer aos muitos que repercutiram os fatos com fidelidade. Bem como agradeci aos que reconheceram os méritos e a coragem de Zuzu, porém omitiram no texto a verdade histórica de seu assassinato.
A fim de tornar indelével na memória brasileira essa realidade trágica indiscutível, ainda tratada de forma ambígua por alguns, nós, filhas de Zuzu Angel, após muitos anos de sua morte, resolvemos recorrer ao reconhecimento da Justiça, através do competente advogado dr. Ivan Nunes Ferreira.
Aproveito aqui para informar aos que inadvertidamente negarem o assassinato de Zuzu Angel, acontecido numa emboscada covarde pelos agentes da ditadura, que não se trata mais de simples omissão ou negligência, mas de um crime contra a memória de nosso país.
Obrigada.
Brasil, depois da queda, a putrefação
Hildegard Angel
O Brasil está na UTI, em estado terminal. Não adiantam mais cloroquina nem tubaína. Sequer cabe uma tentativa de ressuscitação. Estamos já em tratamento por médico paliativista, sob doses de morfina, na infrutífera tentativa de morte sem dor.
Chegamos ao estágio máximo da impossibilidade. Um país é seu povo. Um país é sua natureza. Quando a vida do povo, muito menos a da natureza importam, muito ao contrário o Estado é o promotor de sua destruição, só nos resta orar por uma passagem serena e indolor.
É como se o Brasil já tivesse se atirado do alto de um prédio de 30 andares, caindo em velocidade proporcional ao seu peso de país continente. Não há mais como impedir o impacto da queda, com o esfacelamento de todos os membros. A próxima missão será juntar os pedaços, limpar a área da catástrofe, inventariar os danos e expurgar os responsáveis, submetendo-os a uma Corte Internacional. Como acontece nas guerras, em que o inimigo é levado à expiação pública.
No Brasil, o inimigo é o próprio governante com seus asseclas. Resta a eles como alternativa trancarem-se em seu bunker e injetarem nas veias doses massivas e letais de cloroquina.
Brasil, um corpo já em estado avançado de decomposição, em que o tom esverdeado não é o de nossas matas, mas produzido pelos gases mal cheirosos das bactérias do intestino, e sua grandeza não é a territorial, e sim do inchaço do abdômen putrefato, atraindo moscas, que aceleram a decomposição e incomodam os convidados do velório, enquanto vermes gulosos se alimentam da podridão.
Parasitas, sem ideais, se multiplicam, se locupletam, penetram por todos os orifícios, ocupam todos os espaços, cargos, funções, centrões. Deglutem os privilégios, benesses, mordomias e jetons.
Um governo composto por quem não tem nome a zelar, nada a perder e a oferecer. Fritada, manipulada e humilhada, a sem noção Regina Duarte é agora substituída por um ator da última fila do coro, cuja única memória que guardamos de seu rosto é de um anúncio de cuecas. Perfeito para um cargo em que sua única tarefa será não executar coisa alguma, a não ser cabeças. Em vez de gestor, guilhotinador cultural. Assim como, no meio ambiente, no lugar de sementes, multiplicam-se as serras elétricas, e, na saúde, mortes são geradas em progressão geométrica.
Intrigados, só nos resta o conforto de, num jogo do contente, imaginar que os militares ali estejam apenas em patriótica força tarefa para, antes que seja tarde demais, tentar despertar o gigante entorpecido, sob os efeitos de um “boa noite Cinderela” bem ministrado, dopado para que lhe sejam perpetrados todos os tipos de abusos – o estupro de nossa soberania, da ciência, da cultura, da educação e, como objetivo principal, da Constituição.
A Covid-19 leva Lourdes Catão, última diva dos anos dourados ‘na ativa’
Lourdes Catão, no jardim de seu apartamento, no Edifício Biarritz (Foto de Sebastião Marinho)
Lourdes e Alvaro Catão, anos dourados
Hildegard Angel
A Covid-19 acaba de dar um amargo golpe na alta sociedade brasileira. Morreu, vítima da doença, a diva social Lourdes Catão, aos 93 anos. E ela não estava mesmo fazendo projetos de partir. Dias antes de ser hospitalizada, combinamos ao telefone um almoço em minha casa, depois da epidemia, para reencontrar as amigas. Ela não fazia planos de ficar doente. Falou-me: “Estou aqui bem quietinha, isolada. Eu não quero ir para o hospital”. E todos os cuidados foram tomados nesse sentido. Sequer delivery era pedido, para Lourdes não correr risco de se infectar. O jornal também não entrava na casa, pelo mesmo motivo. A única presença externa eram as duas acompanhantes, que se revezavam a cada dois dias. Ela sentia falta das amigas, que, também em isolamento, não podiam ir vê-la.
Lourdes jamais aposentou o cetro da elegância. Era vaidosa. Em qualquer momento, em casa, em qualquer lugar, estava sempre impecável, penteada, com arco ou fita nos cabelos, usando colar, anéis – e ela ultimamente exibia uma grande safira no dedo, e dizia: “Este anel foi da minha avó”.
Legítima representante da época dourada, não do Brasil, do mundo. Ao lado de Thereza de Souza Campos, compôs o par das Mais Elegantes. Ainda viva, Thereza abdicou do título de “10 Mais”. Talvez porque tenha adquirido outro título, o de princesa, por seu casamento com sua alteza imperial, o príncipe dom João de Orléans e Bragança, e talvez porque não seja tão vaidosa e preocupada com a aparência quanto Lourdes. Não, não incluo Carmen Mayrink Veiga junto às duas, apesar de várias reportagens fazerem isso. Havia uma pequena diferença de idade entre elas – Carmen era um pouco mais jovem – e trajetórias sociais diversas.
Lourdes era um escândalo de bonita. Vê-la entrar num daqueles restaurantes da moda de Nova York, como o La Grenouille ou o Caravelle, era sempre um acontecimento. As mesas silenciavam à visão da loura, quase platinum, cabelos em ondas e bem tratados, envolta em peles ou nalgum tailleur, que poderia estar numa vitrine da Bergdorf Goodman ou da Lord & Taylor. Ela sabia o que era qualidade.
O segredo de Lourdes foi sua enorme capacidade de se reinventar. Quanto seu casamento com Álvaro Catão terminou, ela se mudou para Nova York, com breve passagem por Paris, onde teve um namorado, e se tornou uma decoradora bem sucedida. Seu “abre-te Sésamo” profissional foram as boas relações sociais, como Beatriz Patiño, que lhe entregou o apartamento de Park Avenue para decorar. E vieram outros trabalhos, e mais outros. Lourdes se firmou também nos negócios imobiliários em Nova York. Comprava o imóvel, reformava, decorava, e vendia com lucro. Sua melhor credencial era seu próprio apartamento em Manhattan, ou a casa de Connecticut.
Sempre morou bem. A casa da Urca era um luxo, e quem quiser conferir a sua fachada neoclássica, o imóvel ainda está lá intocado, depois de ter sido vendido. Em Santa Catarina, onde foi morar depois de retornar ao Brasil, fez um paraíso particular na Lagoa da Conceição, em Florianópolis, para onde levava as amigas queridas do Rio de Janeiro, que retornavam embasbacadas diante do cenário montado por ela, cercado de jardins, flores, arvoredo.
Quando morreu Lucia Stone, viúva do diretor da Motion Pictures, Harry Stone, Lourdes não perdeu tempo. Lucia morava num dos mais emblemáticos e cobiçados endereços do Rio, o Edifício Biarritz, na Praia do Flamengo. Seu apartamento térreo tinha direito ao uso do jardim ao fundo, com fontes e esculturas Art-Déco, topiarias, paisagismo francês clássico muito bonito, onde os Stone deram festas memoráveis na cidade. Lourdes pediu ajuda à irmã, Helena Gondim, que telefonou fazendo uma proposta de compra do imóvel para a herdeira e sobrinha de Lucia Stone, Loreta Burlamaqui. Venda imediatamente fechada. Quando os outros candidatos à compra abriram o olho, as chaves já estavam com Lourdes, que fez do duplex uma joia preciosa, com móveis ingleses, chinoiserie, ares de refinamento e até cheiro de Central Park South, New York.
Com a morte de Helena, Lourdes passou a editar o livro Sociedade Brasileira, iniciativa de décadas da irmã. Coube à Lourdes, filha pródiga que retornava ao cenário social, passar a ditar “quem era quem” na sociedade. O livro era um catálogo exclusivo, um clube fechado, em que ser verbete significava passe livre para a vida em sociedade, praticamente uma condecoração. Depois de três edições, ela interrompeu a publicação. E isso foi para sempre. Não tinha temperamento para sofrer tanta pressão dos que, a todo custo, desejavam ingressar naquelas páginas.
No apartamento do Biarritz, e naquele jardim, ela passou a receber para jantares e almoços, sempre preparados pela própria cozinheira, e disso ela se orgulhava, o que evidenciava seus requintes de grande anfitriã. Sim, Lourdes foi da geração de mulheres que se destacavam por saber receber com classe, as melhores louças, pratas, cristais, o requinte de um menu bem elaborado, e bastante pessoal. Até os arranjos de flores eram dela.
As amigas de Lourdes completavam o cenário. A verdadeira “aristocracia social”. Na minha cabeça revejo, lado a lado, naqueles sofás de damasco, poltronas de veludo, Maria Thereza Williams, Thereza Muniz, Thereza Castello Branco, Thereza de Souza Campos, Therezinha Noronha – as Therezas com H, chancelas de uma época em que tudo era, foi e sempre será elegância.
A última vez em que as amigas de Lourdes foram reunidas foi dia 12 de março, aniversário dela. Naquela data, iniciava-se a quarentena. Sua filha, Bebel Klabin, promoveu um almoço em sua casa de tijolos vermelhos, no Cosme Velho, pelos 93 anos de Lourdes. Foi tudo perfeito. Nós nos cumprimentamos encostando os cotovelos, não mais apertos de mãos nem beijocas. Havia uma orquestra de chorinho, que, a horas tantas, fez algumas de nós dançarem. Lugares marcados à mesa, Lourdes exultante à cabeceira. Jogo americano grifado por Lygia Mattos e bolo de aniversário, enfeitado com miosótis, de Regina Rodrigues, a boleira que marca RR em seus bolos e docinhos. Não faltou, à sobremesa, o discurso da aniversariante, declarando felicidade pelos filhos sensacionais que teve, afirmando não guardar arrependimentos de qualquer espécie – e concluindo com um brinde à Bebel, e a frase: “Minha filha, eu amo muito você!”.
Bebel retribuiu: “Mamãe, você foi o grande exemplo de minha vida, que eu procurei sempre seguir”. Aplausos. A grande revelação da tarde foi o anúncio, por Bebel, de que sua mãe trocaria o duplex do Biarritz por um apartamento “sem escada” em Ipanema. Assim, Lourdes ficaria mais confortável, Bebel mais descansada, e o Biarritz perderia sua diva.
Sabíamos que Lourdes não desejava abandonar sua “obra prima”, que seu desejo era morar ali naquele cenário para sempre. Mas ela jamais contrariaria a filha. Nem precisou. O destino se encarregou de atender ao seu último desejo.
PS: Nesses últimos dias, o coronavírus levou outra grande dama da sociedade dos anos 50/60, grande dama mesmo, Gilda Saavedra, viúva do Barão de Saavedra, linda e refinada, padrão das mulheres perfeitas da época, morreu no dia em que completava 100 anos. A Covid-19 está fazendo um estrago na memória social brasileira.
Um cemitério nas costas*, com honra e louvor
Hildegard Angel
Não são os velhos que estão morrendo. É o meu mundo que está se indo embora. Hoje, partiu minha infância, com Little Richard, que me fez vir à cabeça o pote de Gumex de meu irmão, que devia ter uns 14 anos, usado para esculpir seu topete elaborado. Vestido com sua jaqueta de couro, à la James Dean, Tuti fez uma única festa em casa, com todos os amigos dançando rock na sala, ao som de Tutti Frutti – Tuti como no apelido dele, “que coincidência” eu achava. Os rapazes balançavam os braços, rodopiavam, giravam as garotas. E eu de penetra, para dissabor do irmão envergonhado pela pirralha infiltrada. Os Long Plays de Little Richard eram o destaque em nossa rádio vitrola, que tocava discos de 33 rotações, 78 e 45, e tinha também The Everly Brothers, Bill Haley & His Comets e, claro, Elvis Presley. Ah, Little Richard foi, sim, o pioneiro do Rock’n Roll, e ninguém tasca seu trono lá de casa.
Alô, Daisy!
Foi-se Daysi Lúcidi, com sua voz morna e meio rouca, que inspirava empatia, ídolo da Rádio Nacional, supercampeã de audiência por décadas com seu programa Alô, Daisy!, amada, idolatrada, com seus conselhos e a caridade radiofônica, que a levou a ingressar na política com honra e glória. Seu reinado nas ondas longas e curtas começou a ser ameaçado por Cidinha Campos, numa disputa pelos melhores horários na emissora, onde Daisy era amada e tinha sempre a primazia das escolhas. Cidinha, no auge de sua juventude, talento, vigor crítico e determinação, abalou a hegemonia de Daysi na casa. Imagino o quanto deve ter sido penoso, para Daysi, ver sua posição afetada. Mas ela foi em frente, na política e nas novelas, para onde foi levada pela amiga, também oriunda do rádio, Janete Clair, e, posteriormente, pelo jovem autor de novelas Gilberto Braga, seu antigo vizinho na rua Ayres Saldanha, em Copacabana. Daysi tinha todo o carinho da classe artística. Era presença constante, com o marido Luís Mendes, nos jantares memoráveis do ator, produtor de novelas e “chef”, Fabio Sabag, e era amiga-irmã da atriz Yara Cortes, que brilhou na telinha global como Dona Xêpa e em O Casarão.
Projeto de Jesus
Foi nos anos 90. Jesus Chediak me procurou com um pedido. Queria mostrar a Hebe Camargo um monólogo teatral a ser apresentado por ela, que excursionaria por todo o Brasil. Liguei para Hebe em São Paulo, ela ficou de avisar quando viesse ao Rio. Assim foi feito. Hebe chegou, marcamos um almoço no Gourmet do Zé Hugo Celidônio, em Botafogo, e fomos eu, ela, o sobrinho, o autor Jesus Chediak, uma outra pessoa que não lembro. Jesus expôs seu projeto. Hebe riu, sem mostrar muito interesse. Aflita, tentei apoiar o amigo com meu argumento tosco: “Hebe, você vai lotar teatros no Brasil inteiro, será o máximo, você vai ganhar toneladas de dinheiro. Cidinha Campos comprou sua casa na Barra com o sucesso de seu monólogo Homem Não Entra.” Pra quê! Hebe fez um muchocho de ironia, deu um risinho, e disse, “ah, a Cidinha comprou uma casa na Barra é?”, como se dissesse “ah, a Cidinha comprou um barraco, é?”. Caí em mim da minha gafe. Hebe era inimiga figadal de Cidinha, que tinha, mais ou menos como com Daisy no rádio, ameaçado a hegemonia da loura na televisão Record. Nunca mais falou-se no projeto de Jesus, e ele seguiu seu caminho, sempre árduo, na cultura brasileira. Há três ou quatro anos, fui convidada para uma sessão reservada de seu documentário sobre Pedro Aleixo, político mineiro, vice-presidente no período de 1967 e 1969, no governo Costa e Silva. Foi Aleixo quem desaprovou a assinatura do AI-5, dizendo a frase “Não temo o que fará o presidente com ele, temo o que poderá fazer o guarda da esquina”. O filme revela que o conservador Pedro Aleixo, udenista de raiz, tinha um irmão membro do Partido Comunista, Alberto Aleixo, tipógrafo e editor do jornal do partido, Voz Operária. Alberto, após longo sumiço, reapareceu para a família em Belo Horizonte, propondo a venda de sua parte na herança comum, avaliada em seis mil cruzeiros. Nenhum herdeiro se interessou. Mas Alberto insistia. Até que um sobrinho se dispôs a comprar a parte, mas só daria quatro mil. Foi quando Alberto insistiu que desejava fechar o negócio, sim, porém apenas por três mil cruzeiros, que era do que precisava para manter a circulação do jornal, sediado no Rio, na rua Álvaro Alvim. E assim foi feito. Alberto Aleixo, idealista de raiz.
Alberto foi preso pelo governo, sua saúde ficou muito abalada na prisão, porém o promotor negou a prisão domiciliar, alegando que, se ele teve saúde para fazer subversão, teria para pagar o preço de seu “crime”. Morreu Alberto cumprindo pena, sozinho, no Souza Aguiar, como presidiário. Pedro Aleixo viveu o drama de, na condição de vice-presidente, não conseguir interceder pelo irmão, com quem chegou a se encontrar uma vez na clandestinidade. Anos de chumbo.
Os Migliaccio
A partida de Flavio Migliaccio trouxe com ela a lembrança de sua irmã, atriz tão fabulosa quanto ele, Dirce Migliaccio, uma das Irmãs Cajazeiras. Lembrei-me de seu desempenho hilariante em O Vaso Suspirado, peça de Francisco Pereira da Silva, atuando em duo com Virginia Valli, minha tia – duas grandes comediantes – no Teatro Jovem de Kleber Santos. Dirce foi das maiores do riso inteligente do país. Aplaudida, contudo, jamais obteve reconhecimento à altura de seu brilhantismo. Morreu quando vivia no Retiro dos Artistas, onde se recolhem os artistas que nunca ganharam o suficiente para um pé de meia.
O Teatro Jovem do Mourisco era considerado “a off-Broadway do teatro carioca”. Kleber propunha uma nova dramaturgia, que refletisse a realidade brasileira. O Jovem valorizava em sua programação os autores nacionais, como o autor Flavio Migliaccio, com a montagem do espetáculo Todo Mundo Ri, em 2 atos. Um ato com texto de Flávio e um de Francisco Pereira da Silva. Foi o teatro de minha adolescência. No Jovem, assisti à épica A Moratória, de Jorge de Andrade, que lançou e projetou a atriz Isabel Ribeiro. Outra peça impagável de Flavio Migliaccio: A Ocasião Desfaz o Ladrão. Lá, assisti à Eva Wilma – que desempenho! – como Banca Dias em O Santo Inquérito, a magistral criação de Dias Gomes, uma “Joana D’Arc” à brasileira. A apoteose de público do teatro de Kleber, contudo, não foi a alta dramaturgia nacional, foi um lindo espetáculo musical, de Hermínio Bello de Carvalho, Rosa de Ouro, com Aracy Cortes, e não me sai da cabeça a voz peculiar e o coro, entoando “Rosa de Ouro / que tesouro / é esta rosa cravada no fundo do peito”.
Que muitas rosas de ouro sejam depositadas nos túmulos de Little Richard, Daysi Lúcidi, Jesus Chediak, Flavio e Dirce Migliaccio, e tantos outros, que partiram deixando rastros encantados e vestígios encantadores. Sim, eu carrego um cemitério nas costas, este é o legado que me coube no latifúndio equilibrista (bênção, Aldir Blanc!) da memória brasileira. E com muita honra!
*Referência ao discurso-epitáfio de Regina Duarte
Renda Mítica
A ingenuidade é a marca da oposição. Arraigada a lógicas e princípios, não sabe lidar com uma realidade do absurdo. Quer argumentar, quando não há ouvidos. Contrapor, quando o por não existe. Num erro tosco, esforça-se, discursa, se esgoela para corrigir projetos prejudiciais ao povo. Assim, consegue fazer com que a renda mínima proposta por Guedes, que seria de 200, passe a 600, podendo chegar a 1.800, mas que chegará ao brasileiro carimbada com um M, de Mito.
Passeata de Pirro
Passeata de Pirro. Desfilou no Aterro, ao meio-dia deste sábado, uma fila única de carros, com forte aparato de viaturas policiais, na abertura e na fechadura. Na comissão de frente, um caminhão de som com oito pessoas na proa, sem máscaras e vestidas de verde e amarelo. Como não havia multidão, havia buzinas, contínuas, insistentes, estridentes, aborrecentes. Não se sabia o que pediam. Ouvia-se vez por outra um grito de “mito”. De um dos carros, partia, em volume alto, música com letra que grunhia “Bolsonaro”. Uma grosseria sem tamanho, invadindo o sábado e a privacidade de ouvidos já acostumados ao silêncio da quarentena. O que queriam? Protestavam contra quê? O “mito” está no poder, devidamente entronizado por eles. Mas o “mito” não aceita poder dividido. Câmara, Senado, Supremo, imagina! Para quê tantos palpites? Como ousam, se há o “mito”, o “mitooo”!!! Não querem um presidente, aspiram por um monarca com poder supremo. Um imperador. Czar. Um Todo Poderoso para reinar no país da verdade paralela, dos feitos virtuais, das conquistas de mentirinha, do progresso fictício. Um ditador fake para o país da fakeada, da fraquejada, da fancaria. Brasil em frangalhos, Brasil com F. De Feio.
O pivô da discórdia entre Mandetta e Bolsonaro é Donald Trump
O pivô da discórdia entre Mandetta e Bolsonaro não é o distanciamento social, é Donald Trump, o lobista mundial nº 1 da hidroxicloraquina antimalárica.
Pressuroso como sempre em copiar e reverenciar o presidente norte-americano, Bolsonaro resolveu imitá-lo também na apologia à cloraquina, cuja eficiência para tratar o COVID-19 é ainda desconhecida, o que tem valido críticas sem limites na mídia americana ao “Mr. America 1st” – desde o jornal The New York Times à revista de sofisticação Vanity Fair.
Com aquela sua facilidade para afirmar coisas de que não entende bem, e depois pular fora quando dá ruim, Trump soltou esse petardo durante um de seus últimos pronunciamentos sobre a pandemia, propalando os méritos da hidroxicloraquina, e aconselhando aos americanos que a tomassem porque “o que vocês têm a perder?”. Como temos visto, pelos relatos recentes, temos a perder a audição, o bom funcionamento cardíaco, a sanidade mental e outros probleminhas, que podem até custar a vida ao paciente.
O exagero de Trump, botando pressão junto à opinião pública por um medicamento sem comprovação científica, fez com que surgissem especulações até sobre a possibilidade de ele vir a licenciar seu nome para a marca e de ter interesses diretos na Sanofi, a francesa fabricante do produto, e que é a maior participação no fundo mútuo Dodge & Cox, em que a família Trump tem investimentos (NYT).
Nos bastidores do governo, quem faz o papel de ardente defensor da cloraquina é Peter Navarro, um assessor econômico que o genro de Trump, Jared Kushner, descobriu na Amazon, e que aposta todo o baralho no medicamento, o qual, contudo, ainda não demonstrou funcionar contra o COVID-19 em qualquer ensaio clínico significativo, e não foi incluído nos relatórios anteriores da China e da França aos grupos de controle.
Navarro é tipo um Abraham Weintraub do Trump. Ele é aquele assessor aloprado da Presidência flagrado enviando e-mails com nome falso em apoio às políticas tarifárias do governo, e que, para desacreditar o NAFTA (Tratado Norte-Americano de Livre Comércio), alegou que “um setor manufatureiro desprotegido leva ao aumento de abortos, abusos domésticos, divórcios e infertilidade”.
Segundo a Vanity Fair, no último domingo Navarro, cuja experiência em saúde pública é nenhuma, reuniu-se com os técnicos da área de saúde do governo, colocando diante deles um impressionante calhamaço de papéis, folhetos, prospectos e pastas, e passando a exaltar estudos que leu, enfatizando “a clara eficácia terapêutica” do remédio, o que, no mundo real, não existe.
Presente, o imunologista que conduz o combate ao COVID-19 nos EUA, dr. Anthony Fauci, com longo histórico médico como pesquisador e chefe do Instituto Nacional de Alergia e Doenças Infecciosas, declarou não haver até agora qualquer evidência científica da eficiência do produto, apenas rumores e até piadas, e que são necessários muitos mais dados para sua aprovação. Sem argumentos nem credenciais para tal, Navarro teria ficado rubro de indignação, e reagido como se ouvisse uma ofensa pessoal.
Assim como Fauci se opõe ao desejo de Trump, o ministro da Saúde Mandetta também se opõe aos caprichos cloraquínicos de Bolsonaro. Na falta de um Jared Kushner como genro, Bolsonaro tem os 01,02 e 03 para lhes assoprarem bobagens nas orelhas – que ainda escutam, sorte que ele não se medica com a hidroxicloraquina – e, na falta de um Peter Navarro, tem Osmar Terra.
Sugestão aos ricos: ceder os gramados e quadras de seus clubes para hospitais de campanha
No início da pandemia, então “epidemia”, ouvi de uma amiga frequentadora do Country Club que os ricos não iriam morrer, já que têm recursos para os melhores médicos e hospitais. Por ironia e infelicidade, foi justamente uma sócia do clube, Mirna Bandeira de Mello, uma das primeiras vítimas fatais da doença no Rio de Janeiro. Agora, o Country Club está lá, fechado, com dezenas de sócios infectados, causa de tristeza e preocupação.
O Covid-19 não tem poupado sequer os inatingíveis. A praga não respeita poder e dinheiro. Da Espanha, chega notícia da morte de mais um milionário poderoso, o ex-presidente da Repsol, dono de vinícola, Alfonso Cortina. Nos EUA, a atriz Lee Fierro, de Tubarão, é outra que se foi, entre tantos do show business internacional. Na moda, o estilista italiano de sapatos, Sergio Rossi. O ex-ministro da França, Patrick Devedjian. O britânico, marquês de Bath, Alexander Thynn. O principal consultor do Líder Supremo Ali Khamenei, do Irã. O banqueiro italiano Piero Schlesinger, ex-presidente do Banco Popular de Milão. Nomes pinçados em uma longa lista, permanentemente atualizada, na Wikipedia. Enquanto o primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, com a situação agravada, acaba de dar entrada na UTI.
Em São Paulo, o destino dos que podem pagar são os hospitais Sírio e Libanês e Albert Einstein. No Rio de Janeiro, os hospitais Copa Star, Samaritano, São Vicente, Pró-Cardíaco. Para os que podem pagar, a medicina tem grife. Mas a grife também pode ter medicina pública, é só se dispor a isso. Vai daqui a sugestão: fazer dos mais bem grifados e fechados clubes do Rio hospitais de campanha, cedendo para isso seu gramado imenso e suas quadras de tênis. Assim, seria com o Country Club, bem como o magnífico Gávea Golf Club, junto à Rocinha, com seu green de 18 buracos, dividido em dois campos, atravessando até a auto-estrada Lagoa-Barra; o Itanhangá de Golfe e Polo, originalmente uma fazenda, ao lado de comunidade pobre do mesmo nome; o Jockey Club do Rio de Janeiro, aquela imensidão na Gávea, com pistas e gramados; a Hípica, com seu grandioso picadeiro para saltos diante da Lagoa, todos poderiam fazer igual.
Os clubes paulistanos, como o Harmonia de Tênis; o Esporte Clube Pinheiros, com seus 170 mil m²; o imenso Paineiras, no Morumbi, o Clube de Campo de São Paulo, 110 hectares de área, entre tantos espaços magníficos, pois clubes grandiosos não faltam à cidade de São Paulo.
Poderiam, todas essas agremiações, contemplar suas comunidades não apenas com o espaço, mas ainda com a participação generosa dos sócios, com doações que contribuam para viabilizar as instalações hospitalares. E sobretudo com o apoio do governo federal, que só de uma tacada premiou os bancos com 1,2 trilhões de reais. Não custa jogar mais um mísero bilhão no chapéu da saúde necessitada.
Os bons exemplos são muitos, e vêm do “mundo civilizado”. Nova York destinou, além do Central Park, as quadras do US Open, o mais famoso torneio de tênis do mundo, no Billie Jean King National Tennis Center, em Queens. Nossos clubes de futebol também estão nos devendo essa.
Esse vírus misterioso, em sua origem e em suas características, nos sugere propósitos múltiplos. Ora eugenistas, quando pune e discrimina os idosos e aqueles que têm males pré-existente. Ora tragicamente reveladores, ao desvendar o rosto tragicamente insensível do capitalismo, que sequestra nos aeroportos cargas de insumos para a saúde de outros países. A face gananciosa dos que se aproveitam até da peste. A face divinamente transformadora, nos fazendo vislumbrar a possibilidade de um mundo pós-Covid, de maior tolerância e fraternidade, com diferenças menos agudas e corações mais atentos.
É isso que o universo está gritando aos nossos ouvidos. Chegou a hora de abrir as mãos e de se dar as mãos, irmanados em torno de um objetivo comum, como única possibilidade de a Humanidade sobreviver e prosseguir.
Vista aérea parcial de gramado e quadras do Country Club, em frente ao mar de Ipanema