E tudo começou com Vinicius de Moraes, quando o Poetinha identificou, no belo e jovem Haroldo Costa, o ator ideal para personificar, no palco do Theatro Municipal do Rio de Janeiro, o personagem Orfeu da Conceição, na montagem épica de 1956, que teve cenários de Oscar Niemeyer e músicas do iniciante Antonio Carlos Brasileiro de Almeida Jobim, o Tom.
Estava então plantada, inexoravelmente, a semente do incansável escritor Haroldo Costa, pesquisador da cultura popular, produtor, diretor e encantador de plateias no mundo todo, com shows memoráveis, que seduziram milhares e milhares, a partir da década de 60, enaltecendo a grandeza da cultura negra, “que enobrece nosso estrato cultural, como elemento fundador de nossa própria nacionalidade” – como disse Ricardo Cravo Albin, com o discurso inspirado com que o saudou em sua posse na Academia Brasileira de Arte.
A solenidade da posse de Haroldo foi na varanda do Instituto Cravo Albin, transformada em auditório superlotado. O sincretismo “social” dos convidados combinava com o sincretismo cultural da obra e da vida do homenageado. Lá estavam, dos embaixadores Marcos Azambuja, que ocupou nossa embaixada na França, e René Haguenauer, às divas das letras, Nélida Piñon, da MPB, cantora Ellen de Lima, e do show business, a performática Rogéria.
Também, os cartunistas Lan e Chico Caruso, os escritores Geraldinho Carneiro e Sérgio Fonta, o pintor Israel Pedrosa, a presidente do Museu da Imagem e do Som, Rosa Maria Araújo, a produtora cultural Lygia Marina Sabino, a jornalista Gilsse Campos, a pianista Maria Luiza Nobre… e assim seguia a relação multifacetada, que incluía Andréa Natal, a general manager do Copacabana Palace, hotel cuja história se cruza, desde a década de 60, com a do acadêmico empossado Haroldo Costa.
Foi no Golden Room daquele hotel que Haroldo deu vazão ao seu talento, montando espetáculos inesquecíveis. Rio Zé Pereira, Sua Excelência o Samba, Aquarela Musical fascinaram plateias, somando naquele palco estrelas como Grande Otelo, Marlene, Zezé Motta, Angela RoRo, Luiz Melodia, Martinho da Vila, Maria Bethania, Dona Ivone Lara.
No mesmo hotel, há mais de 20 anos trepida o Magic Ball do Copa, sob a batuta do Mr. Samba Haroldo Costa, diretor musical deste baile sem concorrentes.
É naquele Golden Room que esperamos assistir, em julho-agosto de 2016, no período do frisson olímpico que o Rio de Janeiro vai viver, ao show de Haroldo ainda em construção Esse Rio Que Eu Amo 450 Anos.
Palco melhor não haverá para um projeto com tal conteúdo na Cidade do Rio de Janeiro, durante uma temporada internacional glamourosa como as Olimpíadas! – Registro feito.
Esse Haroldo elegante, discreto, altivo, porém com a modéstia das almas grandes, estudou Etimologia Musical em Paris, com o monstre sacré Roger Bastide. Na mesma Paris, falou na Unesco sobre Teatro Popular Brasileiro, e, em Cuba, sobre A Poesia Como Instrumento de Libertação.
É estimado e respeitado por todos que o conhecem e frequentam, das rodas de samba às ditas “altas rodas”. Do presidente Fernando Henrique Cardoso, em Brasília, recebeu a Ordem do Mérito Cultural. Em Londres, foi recebido, junto com a mulher, Mary Marinho, como very special guests, para longas e várias temporadas em casa do Mais Bem Vestido do Mundo Marc Birley, dono do exclusivo Annabel’s club, frequentado pela família real. Haroldo é múltiplo!
É ele o autor das indispensáveis biografias dos mitos de nossa música Ernesto Nazareth e Catulo da Paixão Cearense.
Haroldo soma incontável coleção de homenagens, que vão da Medalha Pedro Ernesto, da Câmara do Rio, ao título Embaixador do Rio, pela Univercidade, sem esquecer o cargo de Conselheiro de Cultura do Estado do Rio de Janeiro, em 2004, à Medalha de Honra da Academia de Letras e Arte Zumbi dos Palmares – SP.
Por fim, honraria maior não há do que a sua biografia, lançada pela Editora Rio, na coleção Gente, realizada pela Universidade Estácio de Sá.
“A defesa da negritude, em meio à placidez e à elegância de suas atitudes, faz dele uma liderança na comunidade afro-brasileira”, palavras ditas por Ricardo Cravo Albin no encerramento de sua saudação, sucedidas pelo discurso de Haroldo Costa, sóbrio na atitude, contudo impetuoso no conteúdo, levando a audiência a se levantar comovida, ao final, e aplaudi-lo.
Sua Cadeira na Academia Brasileira de Arte, a nº 32, tem como patrono Castro Alves: “Para uns, o “poeta dos escravos”, para outros, o “poeta da abolição”, para todos, o “poeta da liberdade” – iniciou assim sua fala, o novo imortal das artes.
Foi então que, mesmo sem nos darmos conta, “embarcamos”, através de suas palavras, ditas de forma compassada e firme, junto com os passageiros das grandes naus do sofrimento, traduzidas pelo poeta do Navio Negreiro.
Lá discorreu Haroldo Costa sobre o “porta-voz das lágrimas e das dores de uma legião de desafortunados, caçados nas matas e nas savanas africanas, sem a sua identidade, eles se tornavam carga anônima, peças a serem repartidas e negociadas em leilões do lado de cá do Atlântico”.
Eu lhes peço, pois, atenção ao relato seguinte, por não haver maior atualidade no martírio que descreve e conta, nesses tempos em que vemos, todos os dias, milhares e milhares de refugiados asiáticos e africanos vagarem pelos oceanos em barcos superlotados, à espera de água e um prato de comida e à procura de países que os aceitem e isso lhes é negado. Conta Haroldo:
“Foram cerca de seis milhões de pessoas (NR: os escravos saídos da África). Aqui, um ponto de interrogação se faz necessário: Pessoas? Poder-se-ia dizer que, aos olhos de hoje, era um verdadeiro holocausto levado por navios, que, no dizer do professor Robert Farris Thompson, antropólogo da Universidade de Yale, eram verdadeiros campos de concentração flutuantes.
Os iorubás, também denominados como nagôs, os gêges, os haussás, os malês, os bantos eram personagens e testemunhas de um dos maiores crimes já perpetrados contra seres humanos, condição que iam perdendo à medida em que os barcos avançavam oceano adentro.
Caçados nas vilas e nas florestas, com a identidade raspada por aquela promiscuidade dos porões infectos, os idiomas se entrecruzavam e, muitas vezes, o próprio Deus não era comum a todos.
Lá estavam eles, unidos pelas correntes, que rasgavam a carne, e as lembranças, sob o céu imenso, que a tudo encobria, e sobre as águas, que, para tantos, seria o túmulo. Entre preces e gemidos, sussurros para Olorum ou Alá, os prisioneiros tentavam sublimar de alguma forma aquele sofrimento que ninguém sabia onde, como e quando terminaria.
Certamente, não para mitigar o sofrimento, mas para exercitar a musculatura, que ia se definhando, o comandante ordenava que dançassem, terrível paradoxo. Aí é que, como se fosse testemunha, toma a força da linguagem, para reportar as cenas terríveis, a voz do poeta Castro Alves nos versos de Navio Negreiro, o libelo da poesia.
Era um sonho dantesco… o tombadilho
Que das luzernas avermelham o brilho
Em sangue a se banhar.
Tinir de ferros.
Estalar de açoite.
Legião de homens negros como a noite.
Horrendos a dançar.
Negras mulheres, suspendendo às tetas,
Magras crianças, cujas bocas pretas
Regam o sangue das mães!
Outras, moças, mas nuas e espantadas,
No turbilhão de espectros arrastadas,
Em ânsias e mágoas vãs!
E ri-se a orquestra, irônica, estridente…
E da ronda fantástica a serpente
Faz doidas espirais…
Se o velho arqueja… se no resvala,
Ouvem-se gritos… o chicote estala.
E voam mais e mais…
Presa nos elos de uma só cadeia,
A multidão faminta cambaleia,
E chora e dança ali!
“E lá ficavam, socando o tombadilho, numa dança macabra, destilando a vergonha, mascando a saliva amarga do infortúnio registrado nos versos de Castro Alves”, diz Haroldo.
Senhor, Deus dos desgraçados!
Dizei-me vós, Senhor Deus!
Se é loucura… se é verdade
Tanto horror perante os céus!
Ó mar! por que não apagas
Com a esponja de tuas vagas
Do teu manto este borrão?
Astros! Noites! Tempestades!
Rolai das imensidades!
Varrei os mares, tufão!
A esta grande tragédia humana, o pesquisador Haroldo Costa lança seu olhar consequente e dela colhe resultados frutíferos, ditos abaixo:
“Estava sendo vivido, naqueles momentos, o prólogo da musicalidade que brotaria no Novo Mundo, que seria erguida sobre lagrimas, suor, gemidos e soluços. Os mandingas, congos, cambindas, retalhados em lotes eram despejados nos portos de Charleston, Havana, Salvador, Rio de Janeiro e Montevidéo, espalhando seus cânticos e suas danças, seus deuses e suas crenças, que algum tempo depois refloresceriam nos passos do cakewalk, no trompete de Louis Armstrong, na flauta de Pixinguinha, nas cerimônias da santeria cubana, nas cantigas dos candomblés e nos sambas de enredo, que se tornaram a interpretação mais intrínseca da alma brasileira e a narrativa eloquente de fatos da nossa historia não oficial”.
Ele rememora o encontro de Pablo Picasso com máscaras africanas no atelier de Cézanne em Paris, fazendo-lhe surgir fagulhas no olhar e gestando o cubismo. Que o diga o quadro Les Demoiselles D’Avignon, que, segundo Haroldo, “tem o umbigo enterrado na África”.
Cita os versos Vozes D’África, em que Castro Alves preconizava que “aquelas viagens malditas, os corpos retalhados a chicote no Pelourinho, as celebrações animistas, seriam o alicerce, a argamassa orgânica para o florescimento cultural em vários países americanos e até europeus”.
Lembra a Semana de Arte Moderna de 1922 como “ponto de partida para o reconhecimento da contribuição do negro, no que se convencionou chamar o Perfil Brasileiro”. Fazendo abranger aí as obras de Malfati, Portinari, Di, Tarsila, Milliet, os Andrade, mestre Villa, Guarnieri, Mignone, Nepomuceno, Brecheret, Gilberto Freire, Lins do Rego, Jorge Amado.
Conclui: “A partir daquele momento histórico de 22, o olhar dos nossos artistas em direção ao Brasil passou a ter uma profundidade reveladora, que a miscigenação racial produz e reproduz”.
Em tudo identifica “as digitais dos descendentes dos escravos, que chegaram aos entrepostos sem saber onde estavam e que destino lhes seria imposto”.
Torna a Castro Alves: “O Condoreiro* , como o chamou Capistrano de Abreu, o romântico que cantava os perigos e as doçuras de amar”:
Boa noite!… E tu dizes – Boa noite.
Mas não digas assim por entre beijos…
Mas não me digas descobrindo o peito,
Mar de amor onde vagam meus desejos.(…)
Em sua ode a Castro Alves, Haroldo o descreve como “paladino incansável na solidariedade e na exposição poética; com a grandeza e o clamor dos seus versos para exaltar os que traziam o que restava do seu maltratado ser e do seu insuspeitável saber”.
Encerra solenemente triste:
“Meu bisavô estava lá”.
Todos se comovem. Aplaudem.
E a tragédia continua a singrar e sangrar os mares nossos de cada dia…
Haroldo Costa convidou para o encaminharem até à mesa da solenidade em que receberia as insígnias, os acadêmicos embaixador Marcos Azambuja, o pintor Israel Pedrosa e esta jornalista, Hildegard Angel, membro da Academia Brasileira de Arte, na condição de presidente do Instituto Zuzu Angel de Moda
Ricardo Cravo Albin, presidente do Instituto Cravo Albin, saudou o homenageado, Nélida Piñon, imortal das letras, representou a Academia Brasileira de Letras, a presidente da Academia Brasileira de Arte, Heloísa Aleixo Lustosa, e o secretário-Geral, professor Victorino Chermont de Miranda
Mary Marinho – uma das lendária Irmãs Marinho – colocou o Colar Acadêmico em seu marido, Haroldo Costa
Com a produtora cultural Lene Devictor
Israel Pedrosa, o colecionador de arte Paulo Barragat, o escritor Sergio Fonta e o professor Patrick Meyer
Mary Marinho e Heloísa Lustosa
Embaixador Marcos Azambuja
Haroldo Costa e Rosa Maria Araujo
Haroldo, Israel Pedrosa e Geraldinho Carneiro
O homenageado, já com seu colar acadêmico, a bela Rogéria, Nélida Piñon
Recebendo os cumprimentos de Andréa Natal, general Manager do Copacabana Palace Hotel
Haroldo Costa entre Gilsse Campos e Eliane Caruso
Lygia Marina Sabino, Anna Arruda Callado e Heloísa Lustosa
Ellen de Lima e Haroldo Costa
Com o embaixador René HAguenauer
Com o cartunista Lan
*Condoreirismo – escola literária da poesia brasileira, fundada por Tobias Barreto, da qual Castro Alves era o grande representante, marcada pela temática social e a defesa de ideias igualitárias. Em geral comprometidos com a causa abolicionista e republicana. O condor, a águia, o infinito são metáforas recorrentes, inspirando liberdade.
Hilde, me diga por favor…encontraram nesse navio algum tatatatataravô do Pelé, do Lázaro Ramos, do Gilberto Gil, do Deputado Federal Vicentinho, de algum Preto Notório do presente ou do passado, ou só tinha a poesia mesmo…
Alvaro, encontraram nesse navio os tatatataravôs de todos nós, brasileiros. Pois, por mais brancos que alguns de nós aparentemos ser, o sangue negro pulsa em nós. Pode até não ser em nossas veias, mas corre na trajetória de nossas vidas, de nossas omissões, na passividade muitas vezes vergonhosa com que encaramos ao longo de várias gerações ditas ‘alvas’ o sofrimento de compatriotas negros participantes da construção desta Nação.