Muito impressionantes os obituários publicados hoje sobre dom Eugenio Salles. Li, reli e fui conferir de novo o nome do retratado, pois achei que devia haver algum equívoco. Pensei que se tratasse de algum obituário tardio do saudoso dom Helder Câmara, este sim um santinho, que deixou suas pegadas missionárias, como exemplo de caridade cristã. Ele pregava uma igreja voltada para os pobres, era um exemplo de desprendimento, humildade, absoluta ausência de qualquer tipo de vaidade ou arrogância, um sacerdote de “pés descalços”, totalmente solidário aos jovens perseguidos pela ditadura e, por isso mesmo, ele próprio um perseguido e removido, devido às políticas do clero, do Rio de Janeiro, então centro dos acontecimentos nacionais, para Olinda…
Dom Helder foi chamado de “Arcebispo Vermelho”, teve seu acesso à mídia vetado pelo AI-5, foi pessoalmente perseguido pelo ditador Médici e, como contraponto a tantas maldades, dom Helder só havia plantado coisas boas: construiu a Cruzada São Sebastião no Jardim de Alah, fundou a Comissão de Justiça e Paz, fundou o Banco da Providência, que multiplicou e até hoje multiplica bondades aos pobres neste estado. Faz pensar que, não fosse por dom Helder, a posição da Igreja Católica no Rio de Janeiro, onde não tem mais a liderança que tinha, estaria bem pior…
Curiosamente, foi justamente durante o “período dom Eugenio” que a Igreja Católica no Rio de Janeiro e, por consequência, no Brasil – já que o Rio, sabemos, era, pois era mesmo, no tempo passado, o tambor de ressonância nacional, formava opinião, dava o exemplo – viu acontecer o início e a precipitação de seu declínio. Pois não vamos atribuir apenas à competência das igrejas evangélicas, das seitas pentecostais ou, como querem alguns, à “ingenuidade dos fiéis”, a queda da Igreja Católica nesse ranking…
“Você é 100% responsável pelo que lhe acontece”, disse-me outro dia uma adepta da Mandala olhando-me dentro dos olhos. Estava certa. Somos mesmo. Assim foi com a Igreja Católica no Brasil. Com dom Eugenio à frente, fechando os olhos às maldades cometidas durante a ditadura, fechando seus ouvidos e os portões do Sumaré aos familiares dos jovens ditos “subversivos”, que lá iam levar suas súplicas, como fez com minha mãe, Zuzu Angel (e isso está documentado), e hoje, supreendentemente, os jornais querem nos fazer acreditar que ocorreu justo o contrário!…
Era público e notório e mais do que sabido naquela época que dom Eugenio endossava que fossem chamados de “padres vermelhos” (alcunha que, então, mesclava rejeição e pânico) aqueles religiosos que abrigavam, sob suas batinas poídas, em suas paróquias suburbanas, os jovens que tentavam escapar das torturas e das sentenças de morte sumária…
Mas não é isso que os obituários de hoje contam…
Como não contam da mágoa de padres jovens, brilhantes pregadores, que conseguiam lotar as missas de suas paróquias com legiões de fiéis, multidões de católicos, jovens padres que ganhavam visibilidade, convites, apareciam na imprensa, somavam admirações e logo eram removidos por dom Eugenio para paróquias bem distantes, como se fossem ironicamente punidos, em vez de serem premiados, pelo belo trabalho que realizavam para a Igreja Católica. Os bons pregadores eram afastados…
Alguns desses padres, que poderiam ter feito belíssimas carreiras no clero, foram podados na origem. Uns caíram no mais completo esquecimento. Outros entraram em depressão. Soube de alguns que abandonaram a batina. Não era de boa política sobressair-se na “era dom Eugenio Salles”…
Duplo castigo: para os padres e para os paroquianos, que assim iam acumulando decepções com sua religião. Outro fator que contribuiu para o declínio católico no Rio nesse período foi a série de proibições tolas, que, em vez de inspirar bondade, em vez de agregar seguidores, só motivaram afastamentos…
Nas cerimônias de casamento, foram proibidas músicas classificadas como “não sacras”, e sabe-se lá por quais critérios. Então, por exemplo, uma jovem chamada Luciana não podia mais entrar na igreja ao som da singela cantiga “Luciana”, de Edmundo Souto e Paulinho Tapajós, como esteve tão em moda. Caprichos, arbitrariedades, tolices, que só afastavam os católicos de sua igreja…
Batizados só podiam ser coletivos. Padres só eram autorizados a celebrar batizados e casamentos na igreja, não mais em residências, sítios, casas de festas. O que antes era corriqueiro passou a ser proibido. Então, tornou-se usual acontecerem casamentos de católicos oficiados por pastores protestantes. Logo, o oficiante mais procurado, era o pastor Jonas Rezende, pai da atriz Lidia Brondi, lembram? Que aliás prega lindamente. A sociedade católica do Rio de Janeiro acostumou-se a escutar as belíssimas preleções do pastor Jonas, seus inspiradíssimos sermões matrimoniais…
Tudo passou a ser difícil na Igreja Católica no Rio de Janeiro. Conseguir marcar uma missa de sétimo dia, só com pistolão. Uma extrema unção em casa, só gente muito bem relacionada. Vários pátios paroquiais laterais às igrejas, onde os fiéis antes confraternizavam, onde aconteciam as quermesses, os bazares, as reuniões pós-missas, antigos centros de convívio, foram entregues à especulação imobiliária. Viraram edifícios, shopping centers. Antigas igrejas foram passadas nos cobres. Instalaram-se em andares de prédio. Outras se tornaram construções espremidas entre um edifício e outro, como aconteceu com a Nossa Senhora da Paz. Igrejas sem horário pra abrir nem pra fechar, “por questões de segurança”…
A Igreja Católica, no Rio, sob a égide de dom Eugenio Salles, foi cada vez mais se distanciando dos pobres e se aproximando, cultivando, cortejando as estruturas do poder. Isso não poderia acabar bem. Acabou no menor percentual de católicos no país: 45,8%…
Não há, neste texto, qualquer intenção de ressentimento. Apenas o desejo jornalístico da correção histórica. Dom Eugenio padeceu na terra de um mal de saúde. Os pecados, já pagou por eles. Em seus últimos tempos de vida, a lucidez e a ausência dela alternaram-se. Atenciosos, o arcebispo dom Orani Tempesta, assim como o cardeal-arcebispo anterior, dom Eusébio, mantinham o antigo cardeal do Rio, dom Eugenio, vivendo na residência do Sumaré, com todos os cuidados, a família, a estrutura proporcionada pela Arquidiocese, a que não mais teria direito, por já estar afastado do cargo…
Dom Eugenio teve, em vida, uma grande habilidade: manter ótimas relações com os grandes jornais, para os quais contribuiu regularmente com artigos. Ótimas relações com os jornais, os jornalistas e os donos dos jornais antes da morte. E, como vimos pelo que foi publicado no dia de hoje, também após ela. E são os jornais que legam os registros que escrevem a História…