A esta hora, eu deveria estar embarcando para São Paulo, para uma honrosa homenagem que o Ministério da Justiça prestará, através da Comissão de Anistia, a minha mãe e a outras brasileiras corajosas, na Cinemateca Brasileira, neste Dia Internacional da Mulher. Não pude ir. Um probleminha de saúde. E redigi uma carta justificando-me. A carta diz muito de mim, diz deste dia, diz desta luta que nunca acaba e da qual já estou tão cansada e diz de vocês também que há tantos anos me acompanham nessa empreitada.
Daí que resolvi compartilhar com vocês essa correspondência. Se quiserem lê-la, serão bem-vindos. Caso contrário, se estiverem fatigados como eu dessa batalha em círculos, que jamais termina, entendo perfeitamente.
Beijos.
Prezadas pessoas aqui presentes
Só mesmo um motivo de saúde para me impedir de hoje estar aqui com vocês nesta homenagem a minha mãe, Zuzu Angel, e outras mulheres valorosas como ela.
Este ano serão, no dia 14 de abril, 36 anos de seu assassinato pela ditadura, crime comprovado em 1998 pelo Governo Brasileiro. Além das inúmeras e comoventes homenagens, esta foi a única resposta oficial que tivemos até hoje: a confirmação do que todos já suspeitávamos, de que a morte de minha mãe foi provocada. Mas… é muito pouco, vocês não acham?
Quem são esses indivíduos sem rosto, sem nome, sem coração e sem alma, que urdiram nas sombras a cilada que empreenderiam, na madrugada, contra a mulher corajosa e solitária, que guiava seu Karman Ghia com a mala do carro lotada com exemplares do livro do historiador Helio Silva, que trazia transcrita a carta de Alex Polari D’Alverga, testemunhando em detalhes a tortura, a morte, o suplício de meu irmão Stuart?
Os livros não eram encontrados nas livrarias e, com receio de que o que restava da edição fosse apreendido, ela adquiriu o que pôde e saiu distribuindo a quem encontrasse o documento sobre o martírio de seu filho, as atrocidades cometidas contra ele.
Eram os pedaços de seu “Tuti” que ela entregava, com uma dedicatória emocionada, às pessoas de seu querer bem. E também àquelas que sequer conhecia. Era sua forma de panfletar a sua História, a nossa História brasileira, a sua e a nossa Dor. Dor de ontem e dor de sempre, que ainda me oprime a alma e se reflete nas minhas juntas, impedindo-me de estar hoje aqui.
Em seu discurso comovente no palco do Teatro Casa Grande, na véspera do segundo turno, a então candidata Dilma Rousseff, com uma ênfase e uma emoção que superou todos os seus pronunciamentos de campanha, disse: “Nenhum país desenvolvido respeita país que não não olha pelos seus pobres, nenhum!”. Pois eu peço licença à nossa presidenta para acrescentar: “… e nenhum país desenvolvido, nenhum, respeita país que não olha pela sua História!”.
Chega, estou cansada. Já houve tempo demais para rever esse passado horroroso, esclarece-lo, lavar as feridas, conferir responsabilidades, punir culpados, sim! E até agora, nada!
Duas cruzes, afinal, pesam muito em ombros que foram estofados, não pela ideologia, mas pela poesia, com minha formação romântica de atriz desde a adolescência. De quem decorou Jacques Prevert, leu as irmãs Brontë, sonhou com os centeios de Salinger e, modesta, ambicionava ser Joana D’Arc apenas nos palcos.
E tenho procurado levar essas cruzes da melhor forma. A minha forma.
A rua em que nasceu minha mãe, em sua Curvelo, passou a ter seu nome no mesmo mês de sua morte em 1976. Tive o prazer e a tristeza de ir inaugurá-la. Alguns anos depois, na mesma década, Zuzu virou rua em Belo Horizonte. Eu havia convidado um amigo de minha mãe, deputado cassado José Aparecido de Oliveira, e um amigo da família, o político também cassado Dalton Canabrava, para discursarem pelos Angel. Com esse gesto, pretendia dar voz a quem não a tinha naquele período militar, num evento oficial.
No dia da inauguração, houve um grande temporal. O bairro Mangabeiras ainda era novo e a rua sem asfalto. A solenidade precisou ser no salão da Prefeitura. E pela primeira vez, desde a “fechadura”, aquela casa se abriu para ouvir os políticos da oposição falarem…
Vieram muitas outras homenagens sucessivas à minha mãe, inúmeras, incontáveis, mesmo naqueles nebulosos anos 70 e, depois, nos 80. Para tanto, era usado o eufemismo da “grande costureira”. Ninguém se referia à “grande mãe”. Ninguém falava o subtexto. Mas todos pensavam. Todos sabiam. Bastava isso.
Com o passar dos anos e das homenagens, Zuzu, perdoem-me o humor torto, tornou-se uma espécie de “Elvis” brasileiro: não morreu. Hoje, há quem me chame de Zuzu. Há também quem ingenuamente me pergunte se eu sou a mãe da Zuzu Angel.
Ela dá nome a escolas, creches, centros comunitários, oficinas de costura, tem um Instituto que a celebra e batiza um dos mais importantes túneis do Rio de Janeiro, que liga a Zona Sul à Barra da Tijuca, em cuja saída há um belo monumento, a figura de uma mulher forte, com o punho cerrado cortando o vento, representando Zuzu e sua luta.
Hoje, fui informada de que o prefeito Eduardo Paes, em homenagem ao Dia da Mulher, mandou limpar a estátua de Zuzu, lavá-la e fazer aplicação de verniz, bem como nos monumentos de Ana Nery, Carmen Miranda, Clarisse Indio do Brasil e Sarah Kubitscheck. Minha mãe sempre andou em boas companhias.
Em São Gonçalo, no interior do Rio, há o Centro de Atendimento à Mulher Zuzu Angel. O que o distingue dos demais é que é o único no Estado em que o maior número de queixas não é o das mulheres que sofrem violência, é o dos maridos que apanham delas! Isso eu li no jornal e achei muita graça. Minha mãe, se soubesse, daria uma daquelas suas famosas gargalhadas, que fizeram Chico Buarque de Hollanda defini-la como “uma mulher ferida de morte e rindo”.
Orgulho-me de dizer que meu irmão, Stuart Angel, foi o primeiro desaparecido político a ter sua memória celebrada em um logradouro público no país, ainda na época da ditadura, graças a um caríssimo amigo meu, com quem trabalhei no teatro, o inesperado vereador Carlos Imperial!
Acreditam? Foi o “Rei da Pilantragem” da Jovem Guarda, quem, solidário com as histórias que eu lhe contava na época do teatro, o primeiro a fazer o gesto, nos primórdios dos anos 80, quando emplacou na política em seu primeiro mandato na Cidade do Rio de Janeiro.
Deu o nome de meu irmão a uma praça na Ilha do Governador, diante da Base Aérea do Galeão, onde ele foi torturado e morto pelo brigadeiro Burnier. No dia da inauguração, um temporal! Havia um palanque descoberto e o Tortura Nunca Mais, mesmo sob chuva, estava presente, com seus participantes. Convidei o advogado Nilo Batista, meu amigo-irmão, assistente do dr. Heleno Fragoso, que defendeu Stuart julgado mesmo depois de morto, para fazer o discurso pela família. E choramos todos.
Ainda este mês, será inaugurada no Rio, no bairro de Santa Cruz, uma escola estadual com seu nome, a pedido da própria comunidade que se mobilizou neste sentido, sendo atendida pelo governador Sérgio Cabral, e muito agradeço a ele por isso.
Hoje, Stuart dá nome a diretórios importantes, premiações, tornou-se um símbolo, batiza a ciclovia diante da UFRJ onde estudou Economia e fazia com os companheiros os famosos “comícios relâmpago”, no campus, a bordo de um fusca. Inspirou, juntamente com mamãe, enredo de escola de samba, balé, peças de teatro, filme, livros, poesias, músicas, trabalhos de artistas plásticos consagrados.
Toda essa vasta produção cultural, envolvendo não só os meus mortos como todos os nossos mortos pela ditadura brasileira, nossas mães, irmãs, avós, filhas, nossos maridos, irmãos, pais, parentes, filhos… Bem, todas essas obras preciosas, os filmes que nos espremem a alma, as canções, os livros…
… Tudo isso me dá a certeza, o alento e o conforto: se não for pelas vias da Política e das leis, não se preocupem. A Justiça imperiosa será e já está sendo feita, contada e escrita, através de nossos artistas. A Cultura brasileira está dando conta do recado de, como eu disse no início desta mensagem comprida, “olhar pela nossa História”.
Muito obrigada.
Hildegard Angel