Reproduzo hoje aqui o texto oportuno, esclarecedor e demolidor do mineiro Eduardo De Paula, postado em seu Sumidoiro’s Blog, sobre a questão da cor da pele, tão surpreendentemente atual no Brasil e em outras partes do mundo.
*Eduardo de Paula
Ninguém nunca foi preto, nem branco, e nunca será uma coisa ou outra. Ademais, nessas questões, as palavras têm sido usadas de maneira enganadora, às vezes servindo para criar preconceitos. Entretanto, um bom conceito vem da teoria das cores, apoiada na história e na etimologia.
Variações tonais da tez humana, segundo amostras retiradas do Sistema de Munsell (1).
Leitoras e leitores: Este que aqui vos escreve, nunca viu uma pessoa preta ou negra, branca, amarela, vermelha, etcétera e tal, muito menos de sangue azul. Na verdade, as conhece em vários tons.
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A palavra cor, em sentido amplo, tem servido para definir uma das aparências da natureza. Como parte das imagens, ela entra pelos olhos sob a forma de luz e percorre um caminho que termina no cérebro. Ali, passa por uma elaboração que redunda num conceito individual e o mesmo acontece com o branco e o preto. Cada um vê cada coisa como pode e, algumas vezes, como quer!
Por outro lado, apesar da forma* possuir cores, a matéria em si não as tem. Nesse aspecto, o papel da matéria é tanto refletir, quanto absorver luz e, dessas maneiras, é que faz surgir os mais variados tons ou tonalidades. De fato, cores puras não existem, pois tudo são combinações em três parâmetros, do matiz, do valor e da saturação**. — * Toda forma material tem: tamanho, configuração, textura e cor. / ** Matiz: o nome da cor; Valor: o brilho da cor; Saturação: a intensidade da cor.
Além do mais, o branco e o preto absolutos também não existem. Outro aspecto relevante é o cinza – o mesmo que valor –, que não é cor nem tom, mas tão somente brilho, o qual pode variar do branco ao preto. É uma sucessão que, de maneira mais apropriada, a teoria chama de escala de valores.
É preciso entender que a matéria não traz a cor em si e aqui vai um exemplo. Se alguém for comer u’a maçã num quarto absolutamente escuro, certamente o ambiente não ficará vermelho e nem a fruta será vista. Nesse ambiente, a maçã poderá ser identificada pelo tato, pelo olfato e pelo paladar. Quando for mordida, ruídos serão ouvidos. Desse modo funcionam as coisas no império dos sentidos.
A sensação de cor pode ocorrer de duas maneiras, segundo os seguintes roteiros:
1. Luz → Olho → Cérebro. / 2. Luz → Matéria → Olho → Cérebro.
Ao final desse caminho, chegando ao universo multicolorido, o que se forma é sempre um tom, produto da mistura de um matiz com um cinza. Ele pode ser mais ou menos saturado, mais ou menos brilhante. Isso é justamente o que ocorre com cor de gente.
Egípcios em três tons.
À FLOR DA PELE
Em se tratando da cor de gente, é preciso saber que ela difere apenas no que está à mostra por fora. Por dentro, todos são basicamente iguais, da mesma cor. Por isso, em busca de respostas, vamos perguntar aos dicionários:
1. Tez – superfície, especialmente do rosto humano, o mesmo que epiderme.
2. Melanina – proteína responsável pela pigmentação da pele e dos pelos dos mamíferos. Principal responsável por colorir a pele e os pelos dos seres humanos, além de proteger o DNA das células contra a radiação ultravioleta emitida pelo sol.
Chamam atenção os verbetes moreno e trigueiro, definidos no dicionário Aurélio, assim:
Moreno – “… aquele que tem cor trigueira.” | Trigueiro – “Que tem cor de trigo maduro.”
Com a mesma temática, Ari Barroso compôs a Aquarela do Brasil, dando seu recado:
Ô! Esse Brasil lindo e trigueiro
É o meu Brasil brasileiro
Terra de samba e pandeiro
Brasil! Brasil!
O termo trigueiro serve como adjetivo tanto de branco, quanto de pardo. Pelo menos, é o uso constatado em textos de jornais do início do século XIX, arquivados na Biblioteca Nacional. Imagem abaixo:
Jornais do início do século XIX: branco trigueiro e pardo trigueiro.
A origem do termo pardo está no sânscrito pardāku, chegando ao latim como pardus, que é o nome que davam ao leopardo. O pelo de vários tipos de pardus é de tonalidade* apagada e, em alguns animais, amarronzados, noutros mais acinzentados. Aliás, em italiano, leopardo se diz gatopardo. — * Sinônimo de tom.
Mais para a frente, surge a palavra pardacento, adjetivo que serve para dizer de aparência parda, apagada. Nos humanos, pardo e pardacento se aplica a miscigenados, ou seja, a junção de pele escura com pele clara. Entretanto, a ignorância tradicional leva a imaginar que o(a) descendente perdeu a cor. Não! É exatamente o contrário, adquiriu um tom mais colorido.
Com o auxílio das duas palavras, pode-se dizer: “A cor desse tecido é pardacenta, bem apagada.” “Vem chuva, o céu está coberto de nuvens pardacentas, é hora de comer um frango ao molho pardo.” “À noite, todos os gatos são pardos.”
O famoso português, Antero de Quental, escreveu um poema intitulado Visão, falando do pardacento, assim:
Eu vi o Amor — mas nos seus olhos baços
Nada sorria já: só fixo e lento
Morava agora ali um pensamento
De dor sem trégua e de íntimos cansaços.
Pairava, como espectro, nos espaços,
Todo envolto n’um nimbo pardacento…
Na atitude convulsa do tormento,
Torcia e retorcia os magros braços…
E arrancava das asas destroçadas
A uma e uma as penas maculadas,
Soltando a espaços um soluço fundo,
Soluço de ódio e raiva impenitentes…
E do fantasma as lágrimas ardentes
Caíam lentamente sobre o mundo!
Outro expoente da arte literária, o brasileiro Machado de Assis, que era pardo, também deu seus recados sobre o tema, como este:
“Akáki Akákievitch não tinha a mínima preocupação com o vestir: seu uniforme passara de verde a um pardacento esfarinhado.” — Novela “O capote”, 1843.
Escritor Machado de Assis. / Um felino pardo, o mesmo que leopardo. / Um homem pardo.
Os dicionários chamam também atenção para as palavras negro e preto:
” Que se refere a pessoa de etnia negra.” (Michaelis)
” … diz-se de ou do indivíduo de pele muito escura; com significado antigo, diz-se de ou escravo de pele escura.” (Dic. Priberam / Portugal))
Contudo, todas estas conotações são relativamente recentes. Em tempos remotos, havia outra maneira para se referir a pessoas de pele escura, usava-se a palavra etíope*. Ampliando, diziam Etiópia(as) como terra(as) onde habitavam etíopes. — * Derivada do grego αἴθω + ὤψ (queimada + face).
Bem mais tarde, em 1572, numa passagem dos Luzíadas(2), Camões falou bem das pessoas de pele escura, assim:
A gente que esta terra possuía,
Posto que todos Etíopes eram,
Mais humana no trato parecia
Que os outros que tão mal nos receberam.
Com bailes e com festas de alegria
Pela praia arenosa a nós vieram,
As mulheres consigo e o manso gado […]
As mulheres, queimadas, vêm em cima
Dos vagarosos bois, ali sentadas, […]
Representações de um líbio, um núbio, um asiático e um egípcio.
A dita palavra vem do grego antigo αἰθίοψ (aithíops) – aíthō = queimado / ṓps = rosto. No latim, se escreve aethiops, que tem servido para dar nome científico a vários animais negros – ou quase –, entre eles uma formiga, a Camponotus aethiops. Isso mostra que a palavra vai sempre pulando de galho em galho e ampliando seus significados, para o bem ou para o mal.
Cabe ainda notar que, antes da disseminação da escravatura no mundo ocidental, a cor escura era vista com outros olhos, atenuada em preconceitos. Mas não deixavam de separar os humanos pela cor da pele. Esse foi o entendimento do arqueólogo Heinrich von Minutoli*, depois de ter acesso a vários painéis descritivos do Egito Antigo, encontrados no túmulo do rei Seti I. Trata-se de uma narrativa que recebeu o título de Livro dos Portões(3). — * General prussiano (*12.05.1772 / †16.09.1846).
Os indivíduos, então conhecidos pelos egípcios, eram classificados no critério raça/cor, basicamente de acordo com a tez de cada um. Segundo interpretações atuais, seriam os líbios (brancos), os núbios (negros), os asiáticos (amarelos) e os egípcios (pardos).
CORES OFICIAIS
No Brasil, frequentemente, os conceitos de etnia e raça estão misturados e confundidos. Há quem diga que raça englobaria um conjunto de características do próprio organismo, como a cor da pele. Por sua vez, etnia incluiria fatores culturais, como a nacionalidade, afiliação tribal, religião, língua e as tradições de um determinado grupo.
Por outro lado, o empenho do estado em separar pela cor começou com o Censo Geral do Império, em 1872 – o primeiro do país – e permanece nos dias atuais. Recentemente, através do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, andam insistindo em fazer pesquisas sobre cor ou raça. Porém, de modo arbitrário, reduzida a quatro opções, preta, parda, indígena ou amarela, acrescentando também etnia e língua dos indígenas.
Porém, vale lembrar, o pesquisador Craig Venter(4), pioneiro no sequenciamento do DNA, afirmou em junho de 2000: “O conceito de raça, não possui base genética, nem científica“. Durma quem puder, com um barulho desses!
Frontispício de Fábulas de Esopo (Fabulae Aesopi) e ilustração de “Lavar o etíope”.
A COR E A DOR DA ALMA
Para ilustrar mais o tema, chega-se até Esopo, que seria etíope(6) e de pele escura. Com o simbolismo da fábula O corvo e o Cisne, ele aponta uma sequela advinda do preconceito, o complexo de inferioridade. Assim fala:
Depois de ver o cisne, o corvo ficou com inveja de sua cor, imaginando que era devido às águas em que se banhava. Então, o corvo muda sua rotina e passa o tempo todo percorrendo rios e lagos. Porém, em vão se esfregou e não mudou de cor. E assim foi indo, até que a fome o destruiu. / Moral: Nossa natureza não se altera só pela mudança de comportamento.
Contudo, passado muito tempo, a fábula foi adaptada de maneira perversa, levando o título de como Lavar o etíope. Pode ser lida numa publicação (vide ilustração cima) de 1727, que cita como fonte o escritor grego Homero. Dessa feita, o corvo se transfigura num etíope, melhor dizendo, um homem escuro que pretende ficar claro. Também o provérbio é reescrito, como “Tentar lavar um etíope é trabalhar em vão.”
Corrobora essa ideia, das variações tonais, o fato científico de que elas são consequência da radiação solar. Basta ver o tom bronzeado, ou avermelhado, que alguns adquirem numa temporada de praia. Nesses casos, muda o tom mas não muda a genética, nem define a tal de raça.
— E agora, minha gente, em meio a essa parafernália colorística, concorda que a verdade está no tom?
Por Eduardo de Paula
Revisão: Berta Vianna Palhares Bigarella
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(1) MUNSELL, Albert Henry – (*Boston, Massachusetts, 06.01.1858 / Brookline, Massachusetts, †28.06.1918) Norte-americano, inventor de um sistema tridimensional das cores. As obras mais importantes são “A Color Notation” (1905) e o “Atlas of the Munsell Color System” (1915). Foi também pintor de paisagens, marinhas e retratos.
(2) OS LUZÍADAS – Obra de poesia épica de Luís Vaz de Camões (Lisboa[?]; nascimento e morte: *c.1524 / Lisboa, †10.06.1579 ou 1580. Publicada pela primeira vez em 1572, no período literário do Renascimento, três anos após o regresso do autor do Oriente.
(3) LIVRO DOS PORTÕES – Título dado por Gaston Camille Charles Maspero (Paris, *24.06.1846 / Paris, †30.06.1916). Egiptólogo, membro do Collège de France, membro da Academia de Belas-Artes e comendador da Legião de Honra.
(4) VENTER, John Craig – bioquímico e empresário americano, conhecido por trabalhos pioneiros no sequenciamento do genoma humano e por seu papel na criação de uma forma de vida artificial. Em junho de 2000, numa cerimônia na Casa Branca (USA), pronunciou a frase: “O conceito de raça, não possui base genética, nem científica“.
(6) ESOPO – (Nessebar, *620 a.C. / Delfos, †564 a.C.) Escritor da Grécia Antiga a quem são atribuídas fábulas populares.