Hildegard Angel / Jornal do Brasil / 28 de Outubro de 2018
Com minha mãe, Zuzu Angel, que cantou suas alegrias e sua tragédia em roupas singelas e coloridas (Foto de Mauricio Hora)
Minha mãe amada. Sua coragem e seu espírito de luta nos fazem muita falta nesta hora, neste dia. Imagino como a senhora estaria empenhada, batendo de porta em porta, distribuindo santinhos e mensagens, abordando as pessoas nas ruas ou onde quer que estivessem, para repedir a ladainha de seu sofrimento e de nossa tragédia, nos anos da ditadura no Brasil.
Sei o quanto a senhora prezava a democracia, a liberdade de se expressar, de ir, vir e se reunir. De pensar e de estudar. De criar. Tudo que nos foi negado por aqueles anos de escuridão, que também nos negaram as vidas de Stuart, seu filho, meu irmão, de Sônia, sua nora, minha cunhada, e sua própria vida.
Nada mais disso, no entanto, é lembrado e lamentado por grande parte dos brasileiros. Os que não viveram e muitos dos que viveram aquele período assustador. Tenebroso. Nosso país adorado, e que a senhora tanto louvava em suas roupas, se desumanizou. As pessoas não valorizam e prezam a vida como antes. Elas assistem à espetacularização da violência real, pelos noticiários da TV, como assistem aos filmes com psicopatas na programação das noites de segunda-feira.
Tudo passou a ser trivial em nosso país. Decepar, enforcar, asfixiar, estuprar, toda e qualquer forma de violência, as mais perversas, se tornaram trivialidades.
O pensamento solidário, aquele de olhar a todos como irmãos, que Jesus Cristo trouxe à Terra, se extinguiu, também e principalmente, entre os próprios cristãos. De nada adiantam os apelos quase diários do Papa contra o fascismo. Não o escutam. E os que ouvem sua voz, o criticam. Ser caridoso e piedoso é visto como fraqueza e impostura. Cada um recria o cristianismo de acordo com as conveniências pessoais. Até os religiosos de batina.
Olho em minha volta e não vejo pessoas. Não são humanos os que se deixam dominar pelo desprezo ao próximo. Os que aplaudem e uivam ao chamado do ódio, da perversão, da indignidade.
Como se o grupo de torturadores e assassinos daquele tempo nefasto tivesse se replicado e multiplicado em milhões de brasileiros. Todos sedentos por sangue, cada um de arma na mão. Com um fuzil AR-15 pra chamar de seu.
Ligo a televisão e vejo, chocada, um tresloucado invadir uma sinagoga em Pittsburgh e fuzilar inocentes. O atirador gritou “todos os judeus devem morrer!”. Assim como agora gritam “30 mil devem morrer”, e que o estado brasileiro não deve gastar com os pobres, pois eles não servem pra nada, só pra votar.
O massacre foi no país do armamento liberado, os Estados Unidos da América, onde as crianças levam armas aos colégios e dizimam seus colegas de turma. Modismo bárbaro, que vemos, aos poucos, introduzido em nosso Brasil, ainda com pequena frequência, ainda sem as armas liberadas. E serão até para as crianças, esse é o plano.
Tínhamos uns vizinhos de prédio, praticantes de tiro exímios, campeões, que por descuido ou distração deixaram uma arma ao alcance do filho pequeno. E vimos o dia em que chegou a caminhonete fúnebre para levar o corpo do amiguinho, assassinado por disparo involuntário da criança. A família fechou-se em luto e grande sofrimento. Não era esse o seu objetivo, mas foi essa a sua consequência.
Minha mãe, meu desolamento e minha aflição são tão grandes que me fogem a coerência e o raciocínio. Ah, se você estivesse aqui, para se vestir de preto e sair por aí, clamando seu infortúnio, exibindo o desespero da mãe que perde um filho e nada pode fazer. Nem reagir, nem denunciar, nem implorar por seu corpo. Pelo menos isso, nós conquistamos nesses últimos 30 anos, e às custas das mortes de tantos nos 21 anos que os precederam.
Naquele tempo em que sequer se podia chorar os mortos, você foi se juntar a eles, por desobedecer a “ordem de comando” do silêncio geral. Morta por chorar, por implorar e por fazer seu grito repercutir até ser escutado no estrangeiro.
É esse tempo que querem de volta. Movidos pelo temor da violência, votam para institucionalizar essa mesma violência, dando a ela poder de matar todos, indiscriminadamente, sem processo, sem controle. Com medalha de honra espetada na farda.
Mãe, não tenho a sua capacidade. Tenho procurado fazer o que me é possível, escrever, informar, debater. E sempre chorando muito, pressentindo a tragédia que está prestes a se abater sobre todos nós.
Fui ontem à gruta de São Judas Tadeu. Hoje é aniversário do santo. Acendi uma vela, não pelos meus doentes, pelo Brasil. Ele está mais precisado. Por favor, reze por ele. Quem sabe aí onde está suas preces sejam mais escutadas do que as nossas. Do que as do Papa Francisco.
Te amo, mãe,
Hilde
European glory, and even after
55 thousand Greek, 30 thousand Armenian
A handwritten book is a book
“Julia’s Garland” (fr. Guirlande de Julie)
Parabéns pelo belo e verdadeiro texto/carta a sua talentosa, guerreira e saudosa mãe, Zuzu Angel.
Como professora de História é minha obrigação não deixar tragédias como as que ceifaram a vida de tantos inocentes durante a ditadura serem esquecidas. Me dói na alma ver o quanto a população brasileira é cega e imatura para com nossa frágil democracia. Me dói ver que elegeram um fascista defensor do ódio e da intolerância. Infelizmente estamos repetindo o pior que há em nosso passado
Leio seus textos, sempre! Ninha admiração por ti e por sua luta é enorme! Nunca solte nossa mão.
Emocionante e dolorido.”Eu vejo o futuro repetir o passado” Lamentável e muito triste.
Sem palavras… muito emocionada!
É com imensa emoção que compartilho sua memória, revolta e espanto com a falta de solidariedade entre homens, e a aceitação da parte de inúmeros brasileiros da ideia de extermínio e tortura, seja por falta de lucidez, seja em troca de algumas vantagens prometidas por um fascista,
Estarrecida constato em inúmeros brasileiros a perda de reflexo básico de sobrevivência: mesmo os animais se sentem solidários entre si para perpetuar sua espécie!
Compactuar com alguém que declara que a solução para a economia brasileira é de eliminar os pobres é indigno de um ser humano! Como os nazistas declaravam que a solução para a economia da Alemanha era de eliminar os judeus!
Relembrando antigas lições, digo afim de me sentir ainda humana: Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem!
Acabei de contar a história de sua mãe para uma colega de plantão que está indecisa sobre o voto amanhã ! Quando vi a notificação de seu Twitter fiquei chocada com a coincidência! Nem todos neste país esqueceram essa trajetória de força e garra de sua família! Você é gigante ! Sigamos resistindo !