SCARLET E EU, DUAS GAROTAS CERTAS NUM ELENCO PELO AVESSO

Foi em 14 de julho de 1976, exatamente três meses depois da morte de Zuzu Angel, minha mãe. Era o governo Geisel. No Country Club acontecia a festa em que todas as pessoas importantes do Brasil estavam ou dariam tudo para estar: os 40 anos de Walter Clark. O mais poderoso dos mais poderosos. O homem que reinava absoluto na TV Globo. Num tempo em que Roberto Marinho lhe dava carta branca e poder total e em que Boni ainda nao lhe fazia a sombra que depois fez. Walter era o Superman do Brasil.

E eis que me veio a sorridente e esfuziante Scarlet Moon. Éramos duas jovens jornalistas praticamente da mesma idade. Ela já com um programa de entrevistas, acho que na TV Rio. Eu já colunista de O Globo. Scarlet toda contagiante, com aquela voz firme, forte e sedutora, apresentou-me a um homem de terno ao seu lado, certa de que eu, colunista social, adoraria fazer aquele contato: “Hilde, este é o Roberto, filho do Médici“. Eu gelei. Fiquei desconcertada, porém, mesmo patologicamente tímida como era, consegui dizer (juro, até hoje não sei como reuni tamanha coragem): “E eu sou a irmã do Stuart Angel“.

Foi uma chuveirada de granito. Ele se afastou. Scarlet, desconsolada pela gafe da apresentação, pediu um milhão de desculpas e, no dia seguinte, fez o gesto que valeu pela vida inteira: telefonou e me convidou para dar uma entrevista ao seu programa, câmeras e microfone abertos para falar sobre Stuart e mamãe. Era a ditadura. Lá fui eu. Aos 26 anos.

Foi muito emocionante. Chorei no começo, no meio, no fim. Falei o que tinha para dizer. O que ia no meu coração. O que era possível falar. Foram centenas de manifestações. Tenho o vídeo. Tenho tudo. Os cartões, os recados, os registros dos telefonemas. É só questão de procurar. Mas pouco importa. Importa que esse episódio me ligou à Scarlet indelevelmente. Ela foi corajosa.

Éramos duas vítimas das circunstâncias. Eu, uma vítima sangrando a céu aberto. Ela, uma vítima casual, que, mesmo sem sangrar, estava ali no Country, exercendo como eu a profissão, exercendo a vida, exercendo a convivência com os poderosos, própria da atividade, exercendo a obrigatória e constrangedora alienação dos salões. E em seguida redimindo-se por isso.

Duas garotas certas num elenco pelo avesso.

Eu aqui escrevendo e lembrando como fui, tantas vezes, mal interpretada e mal tratada por ter um amigo homônimo do tal Roberto, o Bob Médici, agente de turismo, casado com a Alice, presenças constantes em minhas colunas, que nem parentes distantes eram do Garrastazu (bate na madeira, tóc, tóc, tóc).

Gozado é que, pela minha cabeça ingênua, sequer de longe, jamais passara a hipótese de uma ilação equivocada ou maliciosa das citações daquele casal em minhas colunas daquele tempo.

É aquela história. Quem está na chuva é pra se molhar.

scarlet 3Anos 70, Scarlet em cena, na peça Os desquitados, no Teatro Aurimar Rocha. O humor da época: em sua camisola, ilustrada com uma maçã, se lê “Light my fire”…

 

13 ideias sobre “SCARLET E EU, DUAS GAROTAS CERTAS NUM ELENCO PELO AVESSO

  1. Um dia vi um casal feliz ,abraçados em uma praia linda!
    Olhei para a minha mãe e perguntei:
    -Mãe, onde fica essa praia?!
    Ela me olhou com seus lindos olhos verdes e disse:
    -Essa é a praia de Copacabana,no Rio de Janeiro.
    Nos meus cinco anos de idade,mas já sonhadora como toda capricorniana,falei:
    -Um dia vou morar nesse lugar!
    Tudo que via na tv,nas revistas e nos jornais sobre o Rio de Janeiro era motivo para eu sonhar!
    Um dia vi uma foto de uma moça com um lenço branco no pescoço e o nome diferente, que me chamou atenção.
    Era uma jornalista,escritora e atriz com nome de lua.
    Meus olhos brilharam,em vê tanto brilho e glamour!
    Outra vez, minha irmã estudando sobre o regime militar,me disse que tinha uma jornalista, chamada Hildegard Angel que tinha perdido o irmão, nesse período lamentável que viveu o país.
    A primeira vez que vi Hildegard Angel sorrindo ao lado dos artistas que eu via na tv,meus olhos brilharam novamente, como no dia em que li sobre Scarlet Moon,mas não tive a mesma sansação,afinal eu senti a dor do que ocorreu no episódio contado pela minha irmã.
    Um dia lhe encontrarei e lhe darei um abraço.
    Realizei meu sonho de sair de Belém do Pará e morar no Rio de Janeiro.
    Até cheguei a ter momentos românticos, como o daquele casal da tv.rsrs
    Hoje moro em um lugar lindo chamado Rio das Ostras e sempre vou ao Rio para matar a saudade do meu sonho de criança.
    Que Nossa Senhora de Fátima esteja sempre com você.
    Nédia

      • Lindo mesmo sempre amada Hilde! Lembrei da bela música “Copacabana” interpretada pela rainha Bethânia, tema de uma novela que rolou em Copa, do incomparável Gilberto Braga… Agora estou torcendo para sair o conjunto de DVDs da tb inesquecível – “Água Viva” do mesmo Braga, com as impagáveis Stella(Tônia Carreiro) e Lourdes Mesquita, Beatriz Segall. Essa novela aliás, mostrada no primeiro trimestre de 1980 marcou demais a minha vida profissional – assim como “Dancin Days” – que tenho aqui onde vc aparece várias vezes como a adorável colunista “Perla”, de “O Globo”… Estava em início de carreira… Bjs e saudades demais!!!

  2. “Ainda bem que sempre existe outro dia.E outros sonhos, e outros risos.E outras pessoas, e outras coisas”.Claríce Líspector. Pra voce querida amiga.

  3. Que delicadeza, Hilde, combina totalmente com a Scarlet que conheci e gostei tanto… a subjetividade pode ser totalmente bem vinda no quebra-cabeça da História, colcha de retalhos de nossas pequenas histórias, motivações, construções e saltos para tentar melhorar esse mundo. Mais do que um depoimento é quase um alerta, de que é possível rever precipitações, preconceitos, e cultivarmos simplicidade, consciência, respeito e dignidade com alegria.

  4. Mais uma excelente crônica da vida brasileira. Certamente vai fazer parte do seu livro “A Comédia Desumana”. É, também, uma divertida homenagem a nossa querida Scarlet Moon. Toda admiração e todo o meu carinho para as duas.

    • A crítica é válida. Se for mais explícito, pode até ser uma crítica construtiva. Estou sempre aberta a refletir sobre minhas falhas e aprimorar o meu trabalho, pois o mundo virtual me possibilita isso. Agradeço a colaboração.
      Abraços,
      Hilde

      • Tia Hilde, bom dia! Adorei sua resposta, classuda como sempre! É fácil criticar não é? Tanto a positiva e principalmente a do outro lado… tem que haver argumento e conhecimento de causa – pois o contrário é simplesmente INÓCUO.

        Bjs e obrigado!

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