REZANDO NA CARTILHA DE DONA CANÔ ATÉ EM SUA DESPEDIDA

Sou uma daquelas brasileiras que tiveram a graça de conhecer dona Canô. Mais do que isso, sou uma daquelas que tiveram a graça de merecer uma graça de dona Canô: um cartãozinho amável, de seu próprio punho, enfeitado com desenhos (cromos? decalques?), em que me falava da alegria que seria para ela minha presença na festa de seus 90 anos. Como sou uma guardadeira de marca maior, é claro que ainda tenho esse cartão e hei de mostrá-lo nas páginas de meu livro de memórias…

Isso foi pouco tempo depois de eu ir aos 50 anos de Maria Bethânia, em missa linda na Igreja de Santo Amaro da Purificação, seguida de festa-jantar no solar de dona Canô. Depois desse evento, aconteceu uma estranheza, uma intriga de gente que invejou minha presença em grupo baiano tão exclusivo, fofoca sem a aprovação de dona Canô, que, delicada e hospitaleira, tratou de tentar corrigir o mal feito com seu gesto amigo de mulher de coração bom, enviando-me seu cartãozinho pessoal, enfatizando a alegria de me ter tido em casa e encerrando o assunto…

Era assim a dona Canô, um ser humano sem espaço pra ruindade. Por isso viveu tanto tempo: 105 anos de bom astral, de mansidão, porém com firmeza de princípios, sem precisar se exaltar, o que, segundo declaração dada, era o segredo seu da saúde e da longevidade. Foi-se ela, deixando sua lição…

Dona Canô era um livro inteiro de máximas do Dalai Lama sintetizado nelazinha só, em seu coque na nuca, em seu costume de golinha, em seu corredor na casa de Santo Amaro com os retratos emoldurados. Com o tanto de filhos em torno dela a agradá-la, mimá-la, gostá-la. Como a Mabel, o Rodrigo, além dos famosos todos…

Filhos que a entendiam, sentiam, vibravam no mesmo diapasão. Filhos que são todos eles “donas Canô”. Não fosse assim, não teriam sabido embalá-la com tanta sabedoria, sensibilidade, carinho e delicadeza, no seu último lugar de deitar. Cobriram-na com flores brancas, como é de costume, e esculpiram um coração vermelho palpitante em cima. Tão lindo, tão Santo Amaro! Tão letra de música de Caetano! Tão sensibilidade de Bethânia! Tão carinhos da poetisa Mabel!…

Sinceramente, em meu posto de observadora dos usos e costumes das pessoas de importância, das celebridades, dos superstars e formadores de opinião planetários, jamais vi um leito de morte tão lindo, arranjado com tamanha gentileza e de tal forma luxuosamente singelo…

Gosto dos cerimoniais, das formalidades e pompas em todos os momentos da vida. Até mesmo quando ela termina. E sem qualquer morbidez tenho a minha relação pessoal dos mais belos caixões ou esquifes ou ataúdes, como vocês preferirem…

O de Jaqueline Kennedy Onassis levava uma cruz de flores brancas sobre um apanhado de heras, muito bonito. O da princesa de Gales, Diana, encimado por um buquê de lírios e tendo também buquê de rosas e uma coroa de mini-margaridas com cartões dos filhos, era encantador, fotogênico como a própria princesa. Os de Michael Jackson e Whitney Houston, sangrando a dor apoteótica da Nação americana pela perda de seus maiores intérpretes, eram de metal dourado e tinham arranjos inacreditáveis de flores coloridas, que lhes cobriam todo o topo, esparramando-se pelas laterais, belíssimos!…

Dona Canô, o coração vermelho singelo de rosas palpitantes, colocado sobre o corpo mortal que a vestia, antes de ela se tornar imortal. Uma decoração de flores que a exalta sem se exaltar. Rezando conforme a cartilha de vida que ela nos legou…

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