O curioso caso do TCC da Petrobras no Cade

Caso abre um precedente que talvez não tenha sido bem calculado
Mário André Machado Cabral
03/07/2019 06:04
No último dia 11 de junho, o Tribunal do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) homologou por maioria um Termo de Compromisso de Cessação (TCC) com a Petróleo Brasileiro S.A. (Petrobras). A Petrobras se comprometeu a alienar oito de suas treze refinarias, o que equivaleria a 50% da sua capacidade de refino.
TCC é instrumento utilizado para cessar um suposto ato concorrencialmente ilícito mediante acordo com o Cade. Se um TCC foi celebrado, a Petrobras estava sendo acusada de prática abusiva no âmbito do Cade. Certo? Curiosamente, não.
Entre os “considerandos” constantes do TCC, reconhece-se: “O Inquérito Administrativo não imputou uma conduta ilícita por parte da Petrobras”. A Conselheira Paula Azevedo, voto vencido, afirmou: “não há nos autos do presente processo qualquer conduta – entendida aqui no sentido de comportamento ou ação – imputada à Petrobras que seria passível de tipificação como uma infração à ordem econômica”. O Conselheiro João Paulo de Resende, também vencido, ponderou: “pouco se avançou na investigação sobre se houve de fato uma conduta e se essa conduta seria considerada uma infração concorrencial”.
O que o Cade tratou como potencialmente anticompetitivo foi o alegado poder de mercado da Petrobras ou, ainda, a estrutura do mercado de refino no País. Ocorre que a competência repressiva do Cade, nos termos do art. 173, § 4º, da Constituição, é para a repressão do abuso do poder econômico, não para a repressão do poder econômico em si.
Se a mera detenção de poder de mercado é motivo para uma intervenção tão drástica e estrutural como a que se deu nesse caso, o Cade precisaria intervir em diversos segmentos altamente concentrados (por exemplo, o minerário, lembrado pelo Conselheiro Resende), de modo a negociar uma alienação de ativos que reduzisse o domínio de mercado por grupos monopolistas ou oligopolistas.
Esse caso abre um precedente que talvez não tenha sido bem calculado.
A celeridade atípica do processo também chama a atenção. O trâmite somou aproximadamente seis meses. Outros casos de abuso de posição dominante passaram anos no Cade – alguns chegando a cerca de uma década. Evidentemente, a morosidade não é desejável; no entanto, uma tramitação tão apressada pode se mostrar incompatível com a complexidade das condutas unilaterais.
Adicionemos outros aspectos curiosos. Dois processos foram apensados ao principal. Um dizia respeito a normas da Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP) que estariam mitigando a concorrência. Outro se referia a uma denúncia da Associação Brasileira dos Importadores de Combustíveis (Abicom) contra a Petrobras por preço predatório.
O primeiro caso era uma imputação à ANP, não à Petrobras. Quanto ao segundo, costuma-se dizer que nunca houve, em toda a história jurisprudencial do Cade, sequer uma condenação por preço predatório. Os parâmetros de prova para essa prática são tão altos e rigorosos, que as condenações se mostram improváveis. Ou seja, mesmo que a alegação contra a Petrobras fosse especificamente de preço predatório – o que não restou claro nem no julgamento do dia 11, nem nos documentos do caso – haveria grandes chances de a companhia não ser condenada.
Antes de decidirem negociar um TCC, empresas e seus advogados avaliam, entre outros fatores, os riscos de condenação. Caso esses riscos sejam baixos, os incentivos para negociar um acordo dessa natureza se reduzem, notadamente se o TCC envolver remédios tão expressivos, como a alienação de ativos.
Seja pela mera detenção de poder de mercado, seja por preço predatório, um processo similar, em condições normais, dificilmente acarretaria condenação para a Petrobras. A despeito disso, a companhia decidiu celebrar um TCC que firma remédios agressivos, de magnitudes inéditas e que lhe retiram metade da capacidade produtiva para entregar a concorrentes. Parece curioso.
No que concerne à análise concorrencial, apesar da dimensão dos compromissos pactuados, o Cade não ofereceu à sociedade uma apuração minimamente detalhada sobre (i) a suposta infração à ordem econômica, (ii) o mercado relevante afetado, (iii) a estrutura do mercado ou (iv) os efeitos líquidos da conduta. Em se tratando de empresa estatal, isso se torna ainda mais indispensável, pois ativos públicos estão em jogo.
Questões importantes não foram respondidas nesse caso.
De uma perspectiva antitruste, o mercado de refino de petróleo é, de fato, monopolizado pela Petrobras?
Resende ponderou que a dimensão geográfica do mercado seria internacional. Havendo possibilidade de importação, caberia ter apreciado a efetiva aptidão da Petrobras para exercer de forma abusiva posição dominante.
Observou-se que o Cade, inclusive, já arquivou uma investigação contra a Petrobras com base nesse argumento.
Por fim, é de extrema sensibilidade a discussão sobre os limites constitucionais da atuação do Cade.
Primeiro, como já arrazoado, a competência do Cade é para reprimir o abuso, não o poder de mercado em si. Segundo, se há monopólio no refino do petróleo, encontra-se legitimidade para tanto no art. 177, II, da Constituição. Pode o Cade fazer um “controle de concorrencialidade” de dispositivo constitucional? Seria curioso.
Em linha com o relatório da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) sobre a política antitruste brasileira, é preciso que o Cade avance no exame de práticas de abuso de posição dominante.
Contudo, para isso, algumas cautelas são fundamentais. Uma delas é a permanente observância de sua estrita missão constitucional. Assim, o Cade manterá sua justa boa reputação.
* Professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie, doutor em Direito Econômico pela USP e advogado na Advocacia José Del Chiaro.

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