O funeral em que Mamã Grande não foi

A foto do enterro de Genival Inácio da Silva, o Vavá, irmão de Lula, mostra gente modesta, tristeza e uma ausência – Foto de Ricardo Stuckert

HILDEGARD ANGEL – JORNAL DO BRASIL – 31/01/19

Na novela Os Funerais de Mamã Grande, de Gabriel García Márquez, Mamã Grande foi a soberana absoluta deste mundo, morreu aos 92 anos, com a fama de santa, e a seu funeral compareceram do Presidente da República ao Papa, passando por contrabandistas, prostitutas e camponeses, produtores de arroz e bananeiros. Eram incontáveis os bens terrenos de Mamã Grande, que os herdeiros passaram a disputar avidamente, após a partida do corpo da defunta de sua casa. Eles somavam “a riqueza do subsolo, as águas territoriais, as cores da bandeira, a soberania nacional, os partidos tradicionais, os direitos do homem, as liberdades dos cidadãos, o primeiro magistrado, a segunda instância, o terceiro debate” etc.

O funeral de ontem não foi o de Mamã Grande. Foi o de Vavá, estimado cidadão de São Bernardo do Campo, morador há 40 anos na mesma casa, que modesto viveu, modesto morreu. Esse legado de dignidade, ninguém quis reivindicar ou comentar. O que se disputou vorazmente foi de quem seria o maior vexame. Do Judiciário, da Polícia Federal ou do Ministério da Justiça? Nesse vale tudo, até rasgar a Constituição foi permitido. Em causa, porém, estavam, sim, “a riqueza do subsolo, as águas territoriais, as cores da bandeira, a soberania nacional, os partidos tradicionais, os direitos do homem, as liberdades dos cidadãos, o primeiro magistrado, a segunda instância, o terceiro debate”. A vida imitava a literatura.

O que parecia se pretender, naquela pantomima real e farsesca, era fazer um ser vivo de morto, e tornar seu tesouro legado daqueles sem seus méritos, sem seu brilho, a legitimidade das urnas, a competência e o apreço pelas causas brasileiras.

Gulosa pretensão daqueles que hoje desmandam e mandam, prendem e arrebentam, mentem e desmentem, vão em frente e voltam atrás, neste país pelo avesso, em que a marcha à ré vai pra frente, o errado virou certo, o herói se tornou vilão e versa-vice.

A respeito, Gabo escreveria novela mais mágica do que toda a sua obra reunida: “O funeral em que Mamã Grande não pôde ir”.

22 ideias sobre “O funeral em que Mamã Grande não foi

  1. Belíssimo texto sem a pretensão de ser belo, mas a de lançar luz sobre um humanismo cada dia mais esgarçado na sociedade brasileira.

  2. Absurdo tenho vergonha de Ser Brasileira com estas pessoas Hipócritas…. meu Pai foi enterrado e no momento um Senhor sem um.pingo de dignidade e sem nenhum caráter resolveu que poderia parar um sepultamento e mudar a regra da Lei da Natureza…. 2 irmãos foram privados da despedida e o Deboche dos Desgraçados continuam. MINHA PERGUNTA É ATE QUANDO?

  3. Parabéns, Hildegard Angel! Que belo texto tão pleno de verdades! Parabéns também por ser você quem é. Comprei a última edição das bancas do Jornal do Brasil e, cheia de alegria, comprei a primeira de seu retorno trazendo você para aquecer meu coração tão dolorido nestes tempos de brasileira tristeza. Obrigada.

  4. Bem ao seu estilo, minha querida Hildegard. Muito obrigada pela análise lúcida e inteligente. Só nos resta, mesmo entre lágrimas de tristeza, seguir lutando pela verdade e justiça de volta ao nosso país. Mais do que nunca #lulalivre !

  5. Seus textos, admiráveis, cheios de sensibilidade e ternura, mas também cheios de indignação. Permita-me desejar-lhe um abraço fraterno.

  6. Há algo mais que pode ser dito sobre esse assunto.
    Os conflitos entre o Direito Natural e o Direito Positivo são tão antigos quanto as civilizações humanas. Eles constituem o tema de fundo da tragédia Antígona, de Sófocles https://pt.wikipedia.org/wiki/Ant%C3%ADgona_(S%C3%B3focles). Li essa tragédia quando era adolescente. Essa obra prima de Sófocles incendiou minha imaginação. Alguns anos mais tarde, aquela leitura influenciou minha decisão de fazer Direito.
    Essa tragédia está sendo repetida no Brasil. Mas na versão brasileira não existe conflito entre Direito Natural e Direito Positivo. O art. 120, da Lei n° 7.210/1984, garante ao detento o direito de participar dos rituais fúnebres de seus parentes. Esse direito foi negado a Lula por Carolina Lebbos e pelo TRF-4. O pretexto utilizado é ridículo. Se tivesse sido autorizado a viajar de ônibus ontem, Lula teria chegado em São Paulo hoje pela manhã.
    Ao apreciar o HC interposto por Lula, o presidente do STF proferiu a seguinte decisão:
    “Concedo ordem de habeas corpus de oficio para, na forma da lei, assegurar, ao requerente Luiz Inácio Lula da Silva, o direito de se encontrar exclusivamente com os seus familiares, na data de hoje, em Unidade Militar na Região, inclusive com a possibilidade do corpo do de cujos ser levado a referida unidade militar, a critério da família”.
    Ao invés de permitir a Lula exercer seu direito de ir ao velório e ao funeral do irmão, o ministro Dias Toffoli reconheceu o direito do morto de visitar o irmão vivo. A decisão proferida pelo presidente do STF não é digna de uma tragédia grega, de uma pornochanchada dos anos 1970 talvez. Uma coisa é certa, nessa estranha Antígona à brasileira a juíza Carolina Lebbos desempenha o papel de Creonte. Os desembargadores do TRF-4 e Dias Toffoli agiram como se fossem soldados à disposição de sua soberana.
    A crueldade do Sistema de Justiça para com Lula é evidente e imperdoável. Nem mesmo a Ditadura foi capaz de impedi-lo de ir ao enterro de sua mãe. Atualmente, violar a Lei no caso dele se tornou uma especialidade da Justiça Federal e do TRF-4. No recato das suas salas climatizadas e de suas casas luxuosas os juízes e desembargadores que perseguem o ex-presidente petista comemoram com champanhe e caviar o fato de terem se transformado em carcereiros vulgares e maldosos?
    Na peça de Sófocles, o adivinho Tirésias faz uma severa advertência a Creonte: os deuses estão furiosos; um grande mal irá se abater sobre ele em razão de sua teimosia. Entretanto, os efeitos trágicos do conflito entre Direito Natural e Direito Positivo não deixam de se expandir até atingirem o rei que proibiu Antígona de enterrar seu irmão e que a condenou à morte em razão de violar a proibição. O filho de Creonte comete suicídio em razão da condenação imposta à sua amada. A mãe dele (esposa de Creonte) tira a própria vida ao saber que o filho se matou.
    A Lei injusta produz efeitos devastadores na vida pessoal de seu autor. O mesmo deve ocorrer em relação às decisões injustas proferidas pelo Judiciário no caso de Lula.
    Em algum momento os juízes serão obrigados a pagar o preço de sua perversidade. A vingança da esquerda não será violenta e sim política. Mas tudo deve ser organizado para ocorrer no tempo certo. Em um ou dois anos o Brasil deve ser sacudido por uma rebelião política que obrigará o país a rediscutir sua constituição. Nesse momento a esquerda deve utilizar todo seu capital político e popular para revogar três privilégios odiosos concedidos aos juízes: irredutibilidade salarial, inamovibilidade e vitaliciedade.
    A política deve recuperar sua hegemonia sobre o mercado. Mas para fazer isso ela terá que recuperar também sua predominância sobre o campo jurídico. Nos últimos dez anos o Poder Judiciário brasileiro abusou demais de sua independência. Ele não deve ser reformado e sim demolido. Um novo formato deve ser criado para conter a petulância e a perversidade dos juízes.
    Os brasileiros devem se autoconceder o poder dever de votar a transferência e/ou demissão de qualquer juiz, desembargador ou ministro de tribunal. O membro do Judiciário que cair em desgraça não deve receber qualquer compensação ou benefício previdenciário. Os salários dos juízes devem ser reduzidos a um patamar compatível com a situação econômica do país. Os membros do sistema de justiça que não ficarem satisfeitos com as novas regras devem ser imediatamente exonerados. Aqueles que ousarem usar seus cargos para desestabilizar o novo regime político do país devem ser encarcerados por um longo período.
    Enquanto isso não acontece, apreciem uma versão cinematográfica de Antígona:
    https://www.youtube.com/watch?v=8kEdIZ7n1rw

    • Fabio, como vai? A comparação com a peça de Sófocles é bem pertinente. Eu mesma vivo e atuo nessa tragédia, já que desde sempre buscamos o corpo de meu irmão para enterrar, e foi preciso muito empenho, luta e coragem de todos, para chegar a uma luz sobre seu desaparecimento. Até hoje sem cadáver. Sófocles vive!
      Meu abraço

  7. Genial, Hildegard. Obrigado pela sua clareza e gentileza em compartilhar conosco os seus textos.

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