Sobre Hildegard Angel

colunadahilde@gmail.com Hildegard Angel é uma das mais respeitadas jornalistas do Rio de Janeiro. Durante mais de 30 anos foi colunista no jornal O Globo, quer cobrindo a sociedade (com seu nome e também com o pseudônimo Perla Sigaud), quer cobrindo comportamento, artes e TV, tendo assinado por mais de uma década a primeira coluna de TV daquele jornal. Nos últimos anos, manteve uma coluna diária no Jornal do Brasil, onde também criou e editou um caderno semanal à sua imagem e semelhança, o Caderno H. Com passagem pelas publicações das grandes editoras brasileiras - Bloch, Três, Abril, Carta, Rio Gráfica - e colaborações também em veículos internacionais, Hildegard talvez seja a colunista social com maior trânsito

COR DE GENTE: A VERDADE ESTÁ NO TOM

Reproduzo hoje aqui o texto oportuno, esclarecedor e demolidor do mineiro Eduardo De Paula, postado em seu Sumidoiro’s Blog, sobre a questão da cor da pele, tão surpreendentemente atual no Brasil e em outras partes do mundo.

 

*Eduardo de Paula

Ninguém nunca foi preto, nem branco, e nunca será uma coisa ou outra. Ademais, nessas questões, as palavras têm sido usadas de maneira enganadora, às vezes servindo para criar preconceitos. Entretanto, um bom conceito vem da teoria das cores, apoiada na história e na etimologia.

Variações tonais da tez humana, segundo amostras retiradas do Sistema de Munsell (1).

Leitoras e leitores: Este que aqui vos escreve, nunca viu uma pessoa preta ou negra, branca, amarela, vermelha, etcétera e tal, muito menos de sangue azul. Na verdade, as conhece em vários tons.

——

      A palavra cor, em sentido amplo, tem servido para definir uma das aparências da natureza. Como parte das imagens, ela entra pelos olhos sob a forma de luz e percorre um caminho que termina no cérebro. Ali, passa por uma elaboração que redunda num conceito individual e o mesmo acontece com o branco e o preto. Cada um vê cada coisa como pode e, algumas vezes, como quer!

Por outro lado, apesar da forma* possuir cores, a matéria em si não as tem. Nesse aspecto, o papel da matéria é tanto refletir, quanto absorver luz e, dessas maneiras, é que faz surgir os mais variados tons ou tonalidades. De fato, cores puras não existem, pois tudo são combinações em três parâmetros, do matiz, do valor e da saturação**. — Toda forma material tem: tamanho, configuração, textura e cor. / ** Matiz: o nome da cor; Valor: o brilho da cor; Saturação: a intensidade da cor. 

Além do mais, o branco e o preto absolutos também não existem. Outro aspecto relevante é o cinza – o mesmo que valor –, que não é cor nem tom, mas tão somente brilho, o qual pode variar do branco ao preto. É uma sucessão que, de maneira mais apropriada, a teoria chama de escala de valores.

É preciso entender que a matéria não traz a cor em si e aqui vai um exemplo. Se alguém for comer u’a maçã num quarto absolutamente escuro, certamente o ambiente não ficará vermelho e nem a fruta será vista. Nesse ambiente, a maçã poderá ser identificada pelo tato, pelo olfato e pelo paladar. Quando for mordida, ruídos serão ouvidos. Desse modo funcionam as coisas no império dos sentidos.

sensação de cor pode ocorrer de duas maneiras, segundo os seguintes roteiros:

1. Luz → Olho → Cérebro. / 2. Luz → Matéria → Olho → Cérebro.

Ao final desse caminho, chegando ao universo multicolorido, o que se forma é sempre um tom, produto da mistura de um matiz com um cinza. Ele pode ser mais ou menos saturado, mais ou menos brilhante. Isso é justamente o que ocorre com cor de gente.

Egípcios em três tons.

À FLOR DA PELE

Em se tratando da cor de gente, é preciso saber que ela difere apenas no que está à mostra por fora. Por dentro, todos são basicamente iguais, da mesma cor. Por isso, em busca de respostas, vamos perguntar aos dicionários:

1. Tez – superfície, especialmente do rosto humano, o mesmo que epiderme.

2. Melanina – proteína responsável pela pigmentação da pele e dos pelos dos mamíferos. Principal responsável por colorir a pele e os pelos dos seres humanos, além de proteger o DNA das células contra a radiação ultravioleta emitida pelo sol.

Chamam atenção os verbetes moreno e trigueiro, definidos no dicionário Aurélio, assim:

Moreno – “… aquele que tem cor trigueira.” | Trigueiro – “Que tem cor de trigo maduro.”

Com a mesma temática, Ari Barroso compôs a Aquarela do Brasil, dando seu recado:

Ô! Esse Brasil lindo e trigueiro
É o meu Brasil brasileiro
Terra de samba e pandeiro
Brasil! Brasil!

O termo trigueiro serve como adjetivo tanto de branco, quanto de pardo. Pelo menos, é o uso constatado em textos de jornais do início do século XIX, arquivados na Biblioteca Nacional. Imagem abaixo:

Jornais do início do século XIX: branco trigueiro e pardo trigueiro.

A origem do termo pardo está no sânscrito pardāku, chegando ao latim como pardus, que é o nome que davam ao leopardo. O pelo de vários tipos de pardus é de tonalidade* apagada e, em alguns animais, amarronzados, noutros mais acinzentados. Aliás, em italiano, leopardo se diz gatopardo. — Sinônimo de tom.

Mais para a frente, surge a palavra pardacento, adjetivo que serve para dizer de aparência parda, apagada. Nos humanos, pardo e pardacento se aplica a miscigenados, ou seja, a junção de pele escura com pele clara. Entretanto, a ignorância tradicional leva a imaginar que o(a) descendente perdeu a cor. Não! É exatamente o contrário, adquiriu um tom mais colorido.

Com o auxílio das duas palavras, pode-se dizer: “A cor desse tecido é pardacenta, bem apagada.” “Vem chuva, o céu está coberto de nuvens pardacentas, é hora de comer um frango ao molho pardo.” “À noite, todos os gatos são pardos.” 

O famoso português, Antero de Quental, escreveu um poema intitulado Visão, falando do pardacento, assim:

Eu vi o Amor — mas nos seus olhos baços
Nada sorria já: só fixo e lento
Morava agora ali um pensamento
De dor sem trégua e de íntimos cansaços.

Pairava, como espectro, nos espaços,
Todo envolto n’um nimbo pardacento
Na atitude convulsa do tormento,
Torcia e retorcia os magros braços…

E arrancava das asas destroçadas
A uma e uma as penas maculadas,
Soltando a espaços um soluço fundo,

Soluço de ódio e raiva impenitentes…
E do fantasma as lágrimas ardentes
Caíam lentamente sobre o mundo!

Outro expoente da arte literária, o brasileiro Machado de Assis, que era pardo, também deu seus recados sobre o tema, como este:

“Akáki Akákievitch não tinha a mínima preocupação com o vestir: seu uniforme passara de verde a um pardacento esfarinhado.” — Novela “O capote”, 1843.

Escritor Machado de Assis. / Um felino pardo, o mesmo que leopardo. / Um homem pardo.

Os dicionários chamam também atenção para as palavras negro e preto:

” Que se refere a pessoa de etnia negra.” (Michaelis)

” … diz-se de ou do indivíduo de pele muito escura; com significado antigo, diz-se de ou escravo de pele escura.” (Dic. Priberam / Portugal))

Contudo, todas estas conotações são relativamente recentes. Em tempos remotos, havia outra maneira para se referir a pessoas de pele escura, usava-se a palavra etíope*. Ampliando, diziam Etiópia(as) como terra(as) onde habitavam etíopes. — * Derivada do grego αἴθω ὤψ (queimada + face).

Bem mais tarde, em 1572, numa passagem dos Luzíadas(2), Camões falou bem das pessoas de pele escura, assim:

A gente que esta terra possuía,
Posto que todos Etíopes eram,
Mais humana no trato parecia
Que os outros que tão mal nos receberam.
Com bailes e com festas de alegria
Pela praia arenosa a nós vieram,
As mulheres consigo e o manso gado […]
As mulheres, queimadas, vêm em cima
Dos vagarosos bois, ali sentadas, […]

Representações de um líbio, um núbio, um asiático e um egípcio.

A dita palavra vem do grego antigo αἰθίοψ (aithíops) – aíthō = queimado / ṓps = rosto. No latim, se escreve aethiops, que tem servido para dar nome científico a vários animais negros – ou quase –, entre eles uma formiga, a Camponotus aethiops. Isso mostra que a palavra vai sempre pulando de galho em galho e ampliando seus significados, para o bem ou para o mal.

Cabe ainda notar que, antes da disseminação da escravatura no mundo ocidental, a cor escura era vista com outros olhos, atenuada em preconceitos. Mas não deixavam de separar os humanos pela cor da pele. Esse foi o entendimento do arqueólogo Heinrich von Minutoli*, depois de ter acesso a vários painéis descritivos do Egito Antigo, encontrados no túmulo do rei Seti I. Trata-se de uma narrativa que recebeu o título de Livro dos Portões(3) * General prussiano (*12.05.1772 / †16.09.1846).

Os indivíduos, então conhecidos pelos egípcios, eram classificados no critério raça/cor, basicamente de acordo com a tez de cada um. Segundo interpretações atuais, seriam os líbios (brancos), os núbios (negros), os asiáticos (amarelos) e os egípcios (pardos).

CORES OFICIAIS

No Brasil, frequentemente, os conceitos de etnia e raça estão misturados e confundidos. Há quem diga que raça englobaria um conjunto de características do próprio organismo, como a cor da pele. Por sua vez, etnia incluiria fatores culturais, como a nacionalidade, afiliação tribal, religião, língua e as tradições de um determinado grupo.

Por outro lado, o empenho do estado em separar pela cor começou com o Censo Geral do Império, em 1872 – o primeiro do país – e permanece nos dias atuais. Recentemente, através do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, andam insistindo em fazer pesquisas sobre cor ou raça. Porém, de modo arbitrário, reduzida a quatro opções, pretaparda, indígena ou amarela, acrescentando também etnia e língua dos indígenas.

Porém, vale lembrar, o pesquisador Craig Venter(4), pioneiro no sequenciamento do DNA, afirmou em junho de 2000: “O conceito de raça, não possui base genética, nem científica“. Durma quem puder, com um barulho desses!

Frontispício de Fábulas de Esopo (Fabulae Aesopi) e ilustração de “Lavar o etíope”.

A COR E A DOR DA ALMA

Para ilustrar mais o tema, chega-se até Esopo, que seria etíope(6) e de pele escura. Com o simbolismo da fábula O corvo e o Cisne, ele aponta uma sequela advinda do preconceito, o complexo de inferioridade. Assim fala:

Depois de ver o cisne, o corvo ficou com inveja de sua cor, imaginando que era devido às águas em que se banhava. Então, o corvo muda sua rotina e passa o tempo todo percorrendo rios e lagos. Porém, em vão se esfregou e não mudou de cor. E assim foi indo, até que a fome o destruiu. / MoralNossa natureza não se altera só pela mudança de comportamento.

Contudo, passado muito tempo, a fábula foi adaptada de maneira perversa, levando o título de como Lavar o etíope. Pode ser lida numa publicação (vide ilustração cima) de 1727,  que cita como fonte o escritor grego Homero. Dessa feita, o corvo se transfigura num etíope, melhor dizendo, um homem escuro que pretende ficar claro. Também o provérbio é reescrito, como “Tentar lavar um etíope é trabalhar em vão.”

Corrobora essa ideia, das variações tonais, o fato científico de que elas são consequência da radiação solar. Basta ver o tom bronzeado, ou avermelhado, que alguns adquirem numa temporada de praia. Nesses casos, muda o tom mas não muda a genética, nem define a tal de raça.

— E agora, minha gente, em meio a essa parafernália colorística, concorda que a verdade está no tom?

Por Eduardo de Paula

Revisão: Berta Vianna Palhares Bigarella

——

(1) MUNSELL, Albert Henry – (*Boston, Massachusetts, 06.01.1858 / Brookline, Massachusetts, †28.06.1918) Norte-americano, inventor de um sistema tridimensional das cores. As obras mais importantes são “A Color Notation” (1905) e o “Atlas of the Munsell Color System” (1915). Foi também pintor de paisagens, marinhas e retratos.

(2) OS LUZÍADAS – Obra de poesia épica de Luís Vaz de Camões (Lisboa[?]; nascimento e morte: *c.1524 / Lisboa, †10.06.1579 ou 1580. Publicada pela primeira vez em 1572, no período literário do Renascimento, três anos após o regresso do autor do Oriente.

(3) LIVRO DOS PORTÕES – Título dado por Gaston Camille Charles Maspero (Paris, *24.06.1846 / Paris, †30.06.1916). Egiptólogo, membro do Collège de France, membro da Academia de Belas-Artes e comendador da Legião de Honra.

(4) VENTER, John Craig – bioquímico e empresário americano, conhecido por trabalhos pioneiros no sequenciamento do genoma humano e por seu papel na criação de uma forma de vida artificial. Em junho de 2000, numa cerimônia na Casa Branca (USA), pronunciou a frase: “O conceito de raça, não possui base genética, nem científica“.

(6) ESOPO – (Nessebar, *620 a.C. / Delfos, †564 a.C.) Escritor da Grécia Antiga a quem são atribuídas fábulas populares.

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01/09/2020

CASCAVEL & CIA.

Filed under: Uncategorized — sumidoiro @ 9:09 am
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♦ Cuidado com a catacrese!

Encantados com um barrete* vermelho, uma carapuça de linho e um sombreiro, mais umas manilhas e um punhado de cascavéis, com facilidade os índios entregaram o Brasil aos portugueses. O preço que pagaram por Pindorama, foi uma verdadeira pechincha. Está na carta ao rei d. Manuel, anunciando a “descoberta”(1) da terra que, daí a pouco, foi renomeada como Vera Cruz. À primeira vista, tudo pode parecer inusitado, mas é pura verdade. — O mesmo que capuz.

Leitura por Caminha, para Cabral, da carta a ser enviada a d. Manuel.

COISAS E PALAVRAS

      Em 9 de março de 1500, Pedro Álvares Cabral partiu de Lisboa para “descobrir” o Brasil. Consumado o feito, no momento do primeiro encontro com os índios, não havia palavra que lhes fosse inteligível. Porém, os estrangeiros recorreram a uma linguagem universal. Sabiam, por experiências anteriores, que ela entrava forte pelos olhos e ouvidos, com sucesso garantido. Vai daí que, de boa-fé, os índios se abalaram com as mensagens dos portugueses. Porém foram enganados, todo mundo sabe! O acontecimento foi narrado pelo escrivão da armada, Pero Vaz de Caminha, em carta ao rei d. Manuel, assim:

“E, na quinta-feira, pela manhã […] seguimos […] diretos à terra […] E chegaríamos a esta ancoragem às dez horas, pouco mais ou menos. […] E o capitão-mor mandou em terra […] a Nicolau Coelho para ver aquele rio. E tão logo ele começou a ir para lá, acudiram pela praia homens, ora dois, ora três, de maneira que, ao chegarem à boca do rio, ali já havia dezoito ou vinte […] Naquele momento, não podia haver fala, nem entendimento de proveito, pois o mar quebra na costa. Somente lhes deu um barrete vermelhoe uma carapuça de linho […] e um sombreiro preto. — * O mesmo capuz colocado no Saci-Pererê, personagem do folclore brasileiro.

Ao sábado*, pela manhã, […] ordenou ao capitão Nicolau Coelho e Bartolomeu Dias que fossem em terra […] Levava Nicolau Coelho cascavéis e manilhas. E a uns dava um cascavel, a outros uma manilha, de maneira que, com aquele engodo, quase nos queriam dar a mão.” 

DECIFRANDO

cascavel de Cabral é uma pequena esfera oca de metal, com uma ranhura, tendo no seu interior uma peça metálica. Uso delas se faz atreladas aos pulsos, braços, no peito ou nas pernas. Da mesma maneira na cabeça ou pescoço dos cavalos, ou mesmo atados em algum outro animal. Quando sofre impacto, por menor que seja, balança e soa com estridência. Por isso é que um cão decorado com cascavéis é sempre notado. E um gato com cascavéis faz um tremendo estardalhaço! Ou seja, quem apela para esses penduricalhos, de alguma maneira quer chamar atenção.

Vai daí que, com inspiração no soar das esferinhas, foi dado o nome de cascavel à cobra peçonhenta. Seu chocalhar é um alerta e avisa que merece respeito. Quanto à sua ocorrência, abrange territórios que vão do México à Argentina. No Brasil dos índios, uns lhe atribuíram o nome maraká mboya*, outros, mboy sininga**. Espelhando-se na cobra, surgiu também uma variação de significado, o de pessoa de má índole, de gênio ruim, que gosta de fazer maldades. — Maraká = chocalho; mboya = serpente. / Mboy sininga = cobra que vibra.

Manuscrito do El Cid, com a palavra cascaueles. / Estátua de Mynaia (Álvar Fañez).

ANTIGUIDADE

No latim vulgar, a palavra é cascabellus, que significa guizo ou sineta. Porém, a etimologia aponta para origens mais antigas e em outras fontes linguísticas. Na Espanha, comprovam os fatos, o cascavel já circulava antes do ano de 1207. Num manuscrito da época, aparece o termo copiado de um texto antigo e grafado no plural, como cascaueles. Trata-se do Poema del Cid (2), versando sobre os heroísmos do El Cid, o homem que livrou Valência da dominação dos condes de Barcelona. — * Naquela época, a letra U representava tanto os sons do V quanto do U.

Numa passagem do poema, fala-se do nobre Minaya, assim:

“… diro mynaya baymos caualgar […] en buenos caballos a petrales, a cascaueles / E a cuberturas de gendales, escudos a los cuelos / E en las manos lanzas q pendones traen…”

Tradução“… disse Minaya*, vamos cavalgar […] em bons cavalos com peitorais, (e) com cascavéis, escudos no pescoço / e nas mãos lanças que pendões trazem…” — * Mynaia representa o nobre Álvar Fáñez, herói e líder militar, no reinado de Alfonso VI.

Cobra cascavel, cascavéis de metal e chocalho da peçonhenta.

SOBRE A MANILHA

Quanto à manilha, trata-se de uma pulseira ou bracelete, que se usava atada aos pulsos, braços, pernas, etc. Não é uma simples argola, surgem com formas variadas. Algumas, devido à sua preciosidade artesanal e de material, foram usadas como moeda. Verdade é que, muito antes da “descoberta” do Brasil, as manilhas supriam navios portugueses como peças muito importantes. O navegador Duarte Pacheco Pereira, a quem atribuem a chegada ao Brasil antes de Pedro Álvares Cabral, obtinha vantagens a troco de manilhas. Isto se sabe através do Esmeraldo de situ orbis, manuscrito de sua autoria. Quando trata da sua passagem pela costa oeste da África, em 1488, particularmente da Etiópia da Guiné, diz que fez uso das manilhas, assim:

“… Foi encontrado um rio muito grande, que se chama Rio Real […] as gentes desse rio são chamadas de Jos, eles […] são nus e todos comem carne humana e, na boca desse Rio Real […] está uma grande aldeia […] nessa terra há as maiores almadias* todas feitas de um pau que se sabe há em toda Etiópia de Guiné** e, algumas delas, há de tais tamanhos que levam oitenta homens.

E estas […] trazem muitos inhames que aqui são muito bons […] e trazem muitos escravos e vacas, e cabras, e carneiros, e há um carneiro que chamam bozy. E tudo isso vendem por sal aos negros da dita aldeia. E as gentes dos nossos navios compram essas coisas por manilhas de cobre, que são muito estimadas, mais que as de latão*. E, por oito ou dez manilhas, se pode haver um bom escravo…” — * Almadia: embarcação comprida e estreita, talhada em um tronco de árvore. / ** Naquela época, era comum chamar as terras onde viviam negros de Etiópia e os negros de etíopes. / *** Latão: liga de cobre e zinco.

Mais adiante, em 1490, o rei d. João II , com o propósito de comemorar o casamento do seu filho d. Afonso com a princesa d. Isabel, promoveu uma sucessão de festas. O cronista Garcia de Rezende, em 1607, escreveu uma rememoração dos fatos:

” E houve aí u’a muito grande representação de um rei da Guiné, em que vinham três gigantes espantosos, que pareciam vivos, de mais de quarenta palmos cada um, com ricos vestido todos pintados d’ouro, que parecia coisa muito rica.

E, com eles, u’a muito grande e rica mourisca retorta, em que vinham duzentos homens tintos de negro, muito grande bailadores, todos cheios de grossas manilhas pelos braços e pernas douradas, que cuidavam que eram d’ouro, e cheios de cascavéis dourados, e muito bem concertados, coisa muito bem feita…”

Manilhas egípcias.

ENGANAÇÕES

Bem antes de Cabral, e de modo a iludir os nativos, os portugueses usaram e abusaram dos cascavéis, mas também das manilhas e dos barretes vermelhos. Para início de qualquer diálogo, as peças estavam sempre à mão, prontas para convencer mais que as palavras. Nesse sentido, uma lembrança vem de Vasco da Gama, durante sua descoberta do Caminho das Índias. Está no relato da viagem:

Ano de 1497 — “Em 25 dias do […] mês de novembro, um sábado à tarde […] entramos em Angra de São Brás*, onde estivemos por treze dias […] Na sexta-feira seguinte, […] vieram cerca de 90 homens pardos […] eles andavam ao longo da praia, alguns trepados em outeiros**. — * Na região do Cabo da Boa Esperança. / ** Outeiro: pequena elevação.

[…] e, quando os vimos, fomos em terra […] e, […] o Capitão-Mor lhes lançara cascavéis […], e eles os tomaram, e não somente […] os que eram lançados, mas vieram tomá-los das mãos do Capitão-Mor. […] do que ficamos muito maravilhados […]

Noutro momento, no mesmo dia 25 e um pouco mais longe, houve mais um contato com os nativos. Assim consta no Diário:

“E o Capitão-Mor mandou então que os apartassem e que viessem um ou dois deles, e isto por acenos. E àqueles que vieram (vieram à bordo) o Capitão lhes deu cascavéis e barretes vermelhos, e eles nos deram manilhas de marfim que traziam nos braços, porque nessa terra, segundo nos parece, há muitos elefantes e nós achávamos o estrabo (excremento) deles bem em frente da aguada onde vinham beber.

COM EMOÇÃO

Em 1553, tocado pelo evento da Descoberta do Caminho das Índias, Camões repetiu a mesma viagem e, daí, empenhou-se em escrever os Luzíadas(3)Numa passagem, narra a mesma experiência que havia lido no diário de Vasco da Gama, assim:

Mando mostrar-lhe peças mais somenos:
Contas de cristalino transparente,
Alguns soantes cascavéis pequenos,
Um barrete vermelho, cor contente.
Vi logo, por sinais e por acenos,
Que com isto se alegra grandemente.
Mando-o soltar com tudo, e assim caminha
Para a povoação que perto tinha.

Poderosas guerreiras ahosi, cobertas de manilhas (foto de 1908).

MEIO DE PAGAMENTO

Na segunda metade do século XV, com o estabelecimento de feitorias de Portugal no oeste da África, surgiu o comércio de escravos. As ofertas vinham de negros que repassavam seus cativos, também negros, para os portugueses. Porém, num certo momento, devido a ganância dos vendedores, houve a interveniência de d. Manuel. Nesse sentido, o rei estabeleceu o seguinte preceito:

Regimento do Trato de São Tomé – 08.02.1519 — “Nós el Rei […] fazemos saber a vós, Álvaro Frade […] que ora encarregaremos de feitor do nosso trato dos escravos da Ilha de São Tomé […] não deem por peça (escravo) mais de quarenta manilhas e daí para baixo, o menos que puder ser…”

Entretanto, daí para a frente, tanta foi a demanda pela manilha que o adereço se vulgarizou, a ponto de tornar-se obrigatório na indumentária de alguns grupos africanos, mais entre as mulheres. Denotava poder, senão delas próprias, pelo menos dos seus maridos ou de quem elas serviam. Considerando a mesma particularidade, durante o século XVII, surgiram as temidas guerreiras ahosi, no reino do Daomé (atual Benin). E como identidade, traziam seus corpos cobertos de manilhas. Treinadas para serem guardiãs do rei, lutaram bravamente durante as incursões coloniais europeias. Alguns ocidentais as tratavam como amazonas(4), visto que  denotavam tremenda valentia.

VARIAÇÕES

Avançando nos significados, ensina o padre Bluteau(5), no seu dicionário:

” Manilha — bracelete ou argola que alguns povos trazem nos braços por adorno […] Huma manilha d’agua, isto é, hum anel […]“.

Neste segundo sentido, corresponde à bitola de um cano e à capacidade condução hídrica. Daí, como desdobramento, foi criado um sistema de medidas que compreende a manilha, o anel e a pena d’água que, em Portugal, prevaleceu até meados do século XIX. Como subdivisão da manilha havia o anel e a pena*. Esta última, correspondendo ao orifício de uma pena de pato**. — * 1 manilha = 16 anéis; 1 anel = 8 penas. / ** Onde não há hidrômetros, a pena d’água ainda está em uso.

Variações da manilha.

Naturalmente, à medida em que a manilha se desdobra em função e forma, ocorre a ampliação da sinonímia. Assim aparecem argolapulseiraanelcolarcoleira, etecétera e tal. São objetos com a serventia de envolver, prender ou abraçar algo – pessoas, bichos e objetos –, que são ditos como cadeados*trancasalgemas*, etc. Com essa vasta conotação, a manilha – em palavra e forma – permanece viva em vários apetrechos de uso corriqueiro. Alguns são mostrados na figura acima. — * Cadeado: tranca que possui uma argola em forma de U. / ** Duas manilhas ligadas a uma corrente compõem um par de algemas.

ANTIGUIDADE

Mais uma vez, no dicionário do padre Bluteau, são esclarecidos alguns pontos, quais sejam:

Bracelete – Ornato que as mulheres costumam trazer ao redor da parte inferior o braço. […] em um manuscrito […] do tempo do imperador Justiniano, se acha fibula de bracile, donde se infere que bracile era bracelete e bracile é corrupção de brachiale*[…] Tito Lívio chama armila. Segundo a etimologia, armila se deriva do latim arma e arma se deriva de armus, ombro. E, devido ao galardão de levarem armas aos ombros, davam os imperadores ou generais de exercito, aos bons soldados, uma insígnia de ouro que chamam armila[…] — Brachiale: braçadeira.

Mas, com o tempo, as insígnias de guerra se fizeram enfeites de vaidade e, com razão, se queixa Tertuliano da vaidade das mulheres, que chegaram a converter em gala feminil os prêmios de valor militar. […] A propósito desta palavra, falando em cães que trazem coleiras, isto é uma figura gramatical que se chama catacrese […]”

De fato, catacrese é um tipo de metáfora que se incorpora no uso comum da língua. Assim sendo, em sentido figurado, manilhas unidas uma às outras formam um tubo condutor, que pode servir para esgotar água, dejetos, e mais seja lá o que for. De outra maneira, o cascavel virou ofídio, barulhento, temido e mortal.

— Agora, com o perdão do bom humor, permita-me um conselho: “Nunca enfie a mão numa manilha sem cautela, lá pode haver uma cascavel adormecida. Cuidado para não despertar a catacrese!”

Pesquisa, texto e arte por *Eduardo de Paula

Revisão: Berta Vianna Palhares Bigarella

*Eduardo De Paula é de Belo Horizonte e reconhecido como um dos artistas plásticos mais importantes de Minas Gerais. Foi professor adjunto da Escola de Belas-Artes da UFMG e um dos fundadores de seu Festival de Inverno da UFMG. Desenhista, ilustrador e designer gráfico, notabilizou-se pela criação de várias identidades gráficas de instituições mineiras. Eduardo de Paula também já trabalhou em diversos órgãos de imprensa, entre eles a Revista Alterosa, o Diário de Minas e o Suplemento Literário do “Minas Gerais”. E para a minha sorte, Eduardo é meu primo-irmão.

——

(1) Suspeita-se outros, entre três navegadores, haviam chegado a algum ponto da costa de Pindorama (Brasil), antes de Cabral. As versões apontam para o português Duarte Pacheco, em 1498; e os espanhóis Vicente Pinzón, em janeiro de 1500 – companheiro de Colombo na descoberta da América – e Diego Lepe, em fevereiro de 1500.

(2) Poema del Cid ou Cantar del Mío Cid – Primeira obra da poesia épica espanhola, reunindo as façanhas de Rodrigo Díaz de Vivar, mas é também um ensaio a traduzir o espírito castelhano. Disseminado por menestréis em praças e castelos, o “Cantar”, além de exaltar valores inerentes à honra e à liberdade, oferece u’a amostra dos costumes da época.

(3) Os Lusíadas – Obra de Luís Vaz de Camões – poesia em estilo épico. Provavelmente concluída em 1556 e publicada em 1572, três anos após sua viagem ao Oriente. Tem como tema a descoberta do Caminho das Índias, por Vasco da Gama, e está mesclada com episódios da história de Portugal.

(4) Amazonas – Segundo a mitologia grega, eram mulheres guerreiras. Elas foram descritas por Heródoto, em 450 a.C. / Delas vem, lá no século XVI, a inspiração para o nome do rio Amazonas, talvez fantasiosa. Diziam que um grupo de nativos, liderados por mulheres, teriam atacado a expedição de Francisco de Orellana. Antes disso, o rio era conhecido como Marañón.

(5) BLUTEAU, Rafael – Religioso português. Autor do monumental Vocabulário Português e Latino, que mais tarde António de Morais Silva modernizou e ampliou, dando assim origem ao seu Dicionário da Língua Portuguesa.

 

WIKIPEDIA APOIA O APAGAMENTO DA MEMÓRIA DE UM DOS MAIORES BRASILEIROS DO SÉCULO XX

 

Hildegard Angel

Abdias Nascimento foi um dos grandes brasileiros do século XX. Com ele iniciou-se o movimento negro organizado, uma luta pela consciência racial, inaugurou-se o Teatro do Negro, o primeiro jornal voltado para as causas de valorização do negro,  e uma trajetória de vida inteira, de um homem que chegou a ser quase centenário, com progressos em todos os campos, pois Abdias foi “ator, poeta, escritor, dramaturgo, artista plástico, professor universitário, político e ativista dos direitos civis e humanos das populações negras brasileiro”, conforme nos informa a Wikipedia. E é justamente aí que eu quero chegar.

A Wikipedia, enciclopédia virtual, hoje o veículo mais procurado para consultas imediatas, e superficiais, não pode ser usada como instrumento de proselitismo político e ideológico. Nem pode nem deve ser usada para reescrever a História do Brasil através da redução biográfica de seus personagens. Elisa Larkin do Nascimento, viúva de Abdias e sua companheira de muitas décadas de ativismo, continuadora de sua luta, vigilante de sua memória, e presidente do movimento Ipeafro, fundado com ele, queixa-se de que a biografia de Abdias na Wikipedia foi profanada por indivíduos ou grupos provavelmente interessados em desvirtuar a história do grande homem, reduzindo-a a momentos desimportantes de sua trajetória pessoal, como se quisessem desmerece-lo.

Os dados originais sobre Abdias na Wikipedia foram cuidadosamente coletados por uma equipe de historiadores contratados pelo Ipeafro, e foram postados tanto na Wikipedia dos Estados Unidos, em inglês, como na do Brasil, em português. E nesta hora em que o Governo brasileiro já expressou explicitamente seu desejo de reescrever a História do Brasil à sua maneira, nomeando para dirigir a Fundação Palmares uma pessoa como Sergio Camargo, radicalmente contra a luta racial, com recursos e poder, de que os idealistas do Ipeafro não dispõem, curiosamente acontece o ataque virtual à biografia de uma personalidade de nossa História, Abdias Nascimento.

Elisa Larkin por várias vezes tentou repor os dados sequestrados, sabe-se lá por quem e por qual motivo, e a Wikipedia, em seguida, os apaga. É triste ver que essa guerra, que no Brasil acontece em todos os setores, não respeita sequer a memória das bravas mulheres e dos bravos homens, que por todas as suas vidas se sacrificaram pelas causas mais importantes, em benefício de nosso povo, nossa Nação, e que agora não mais aqui estão para se defender da voracidade destrutiva dos que querem a História do Brasil narrada a seu modo, de acordo com seu gosto, conveniência, preconceito e prazer. Elisa não sabe em que porta bater para reclamar à Wikipedia, nem a quem escrever, muito menos para qual endereço. Pois esses dados não estão disponíveis na internet.

Nesse novo mundo horroroso, em que as corporações falam através de vozes gravadas, em que o consumidor, o comum mortal não tem acesso algum sequer espaço para sua voz, rumamos, como cabras cegas, guiados apenas por nossa indignação, rumo ao precipício do desamparo. Sugeri a Elisa Larkin procurar os demais amigos da mídia, simpatizantes da causa negra, admiradores de Abdias Nascimento, como fez comigo. Espero que o faça.

O foco de Bolsonaro

Hildegard Angel

O foco de Bolsonaro não é a justiça social, não é favorecer o mercado, não é o neo-liberalismo, não é o conservadorismo, o evangelicismo, o neopentecostalismo, nada disso. Muito menos é um projeto, qualquer projeto, para o país. Seu único e obsessivo foco é se perpetuar no poder. E de preferência como déspota, sem obedecer a qualquer conjunto institucional. Regente único.

Ele já percebeu que o que o ajudará a atingir o objetivo é o assistencialismo barato. Sem planejamento, sem projeto, ao melhor estilo Silvio Santos de ser – “Quem quer dinheiro?”, e atira os tostões para o auditório, que se joga sobre ele como lobos famintos. E bate palmas.

Pois é. A grande lenda cultivada pela direita, de que o PT pretendia manter-se 20 anos no poder, e estaria fazendo assistencialismo barato com esse fim, revelou-se uma grande mentira. O PT agiu democraticamente durante todos os seus mandatos. Atuou tecnicamente, criou equipes, conselhos com participação de especialistas de todos os campos e da sociedade. Trabalhou a sério para melhorar o país e a vida dos brasileiros.

Quem na verdade pretendia poder perpétuo eram seus detratores, os tucanos, que engendraram esse folhetim novelesco de mau gosto chamado impeachment. Mas, ironia do golpe, levou a melhor quem correu por fora, comendo pelas beiradas, e com apoio de tucanos, com o Supremo com tudo. Pariram juntos esse monstruoso bebê de Rosemary, que pouco a pouco vai se ajustando a um modus operandi conveniente. Tirou o sebo dos cabelos, arrumou um alfaiate, volta e meia lhe colocam a focinheira, e aprendeu que, já que lhe falta criatividade, copiar não dói. E copia tudo. Os projetos dos governos anteriores, inaugura obras que não são suas, tenta imitar o estilo Lula de ser afetuoso com o povo (mesmo não havendo sinceridade alguma no afeto que quer demonstrar), e agora copia até discursos, declarações, tuítes de terceiros.

Na verdade, está se orientando, não pelos seus conselheiros, mas pelas críticas que lhe fazem. O que não deixa de ser uma esperteza de bom enganador. A última e mais recente evidência disso deu-se por ocasião do anúncio do adiamento do envio ao Congresso do plano Renda Brasil, que seria custeado graças ao fim do abono salarial. Para justificar sua decisão, criticou Paulo Guedes e declarou, em visita a Minas Gerais: “Não vou tirar dos pobres para dar aos paupérrimos”. Cópia de um comentário da véspera desta jornalista, no Twitter, sobre o plano aleijão que Guedes visava perpetrar, assim como tudo que ele engendra, com o propósito de ferrar os pobres e adular a riqueza.

Até as últimas pesquisas favoráveis ocorrerem, Bolsonaro acreditava que dependia de Guedes para garantir ao menos a conclusão do mandato. Com isso pensava que teria a proteção do ‘mercado’, que já começava a lhe torcer o nariz. Enfim, Bolsonaro percebeu que o apoio que busca pode estar mais embaixo. Embaixo mesmo, nas camadas populares, no X, Y, Z do abecedário.

Mas demagogia também custa dinheiro, ele há de descobrir isso. Na base do improviso, do “quem quer dinheiro?”, sem competência, sem projeto ou plano, não chegará a lugar algum, muito menos com Paulo Guedes.  O Brasil não é um programa de auditório. Ainda.

 

PÉROLAS DE SABEDORIA DE UMA CABEÇA BRANCA DA POLITICA BRASILEIRA

Hildegard Angel

Dias atrás, postei no Twitter que faria bem ao Brasil no momento uma ‘Revolução dos Velhos’, conduzida por nossos grandes valores de cabeças brancas detentores de sabedoria, experiência e bagagem de realizações, e que pudessem apresentar um projeto transformador para o país.

No dia seguinte, a coincidência (e os espiritualistas dizem que o acaso não existe): caí num debate via Skype do grupo ‘Democracia e Soberania’, de profissionais eminentes, com Roberto Requião, no qual colhi algumas oportunas pérolas de sabedoria do veterano ex-senador, pleno de vigor e disposição para participar dessa empreitada…

Roberto Requião:

“Temos que sair dessa subordinação absoluta aos países mais fortes. No momento, temos que ter uma proposta suprapartidária. As redes de TV estão submetidas ao capital financeiro de maneira aberta.”

“O problema da política brasileira é a dependência do dinheiro. É a influencia do capital financeiro. O problema do Congresso é a mediocridade provocada pelas redes de comunicação. Um Congresso sem que haja políticos, sem que haja um programa partidário, sem a disciplina partidária.”

“Rodrigo Maia é um Bolsonaro que sabe escolher o copo de vinho, mas os dois não diferem muito. Não é a bancada “da bala” que pressiona o Congresso. É a bancada “da bola”. Estão lá para vender a Petrobras, em troca de uma ambulância para a cidade de sua base eleitoral, e para eles se reelegerem.”

“Nós precisamos, no momento, de um projeto de transição. E esse plano de transição tem que ser montado pelos famosos intelectuais orgânicos da política brasileira. Um plano adequado, que não vá falhar, e não esse tipo de ‘frente’ ampla, admitindo tudo. Porque o plano que vemos aí é manter a proposta econômica de Guedes, e tirar o Bolsonaro.”

“A população tem que ser mobilizada por uma proposta de esperança, uma proposta de saída, uma proposta nacional, que seja ampla. Esta proposta de unidade está faltando. Essa divisão partidária não vai nos ajudar de jeito algum.”

“Paulo Guedes não é um economista, é um operador do sistema financeiro. O Banco Central tem que ser submetido a um projeto nacional, e não estar na mão de banqueiro. Não podemos subordinar a política brasileira às conveniências da banca. Temos que usar a internet pra formar opinião, pra quebrar essa barreira. E a barreira será quebrada pelo desastre econômico que se avizinha. Não tenho dúvida alguma.”

“Nesse circo em que transformaram o Brasil, Bolsonaro é animador de picadeiro, não passa disso.”

“Contudo, os candidatos que se apresentam, estão se apresentando como fiadores do projeto neoliberal. Temos de trabalhar nesses dois anos e meio na formação de quadros. Temos que nos preparar pra essa virada, que vai acontecer no Brasil. Temos que derrubar o capital financeiro de qualquer maneira.”

“Estamos vendo aí muita gente mudando de posição. Caetano Veloso, mudando de posição. Miriam Leitão, mudando de posição. Eu quero eles submetidos ao Código Canônico: arrependimento, confissão e penitência.”

“Temos que olhar o que aconteceu com a Rússia. Ela fracassou com a Perestroika (na reestruturação da economia), mas o nível tecnológico que alcançou é fantástico.”

“A China está descentralizando a operação econômica. Não é a nossa situação. Nós temos condição de ter um projeto mais interessante, mais democrático que o deles.”

“Nós não produzimos para comer, é para o gado do estrangeiro se alimentar.”

“Desigualdades regionais se eliminam com investimento público pra valer, se eliminam dando educação.”

“No período em que Dilma era presidente, votamos a auditoria da dívida pública, e Dilma vetou. Não vou negar as coisas boas que o PT fez, foi uma fase.”

“O escândalo do Banestado é a primeira ‘Frente Ampla’ dos patifes.”

“A minha linha atual é a do Papa Francisco.”

 

Se você está passando dificuldades na pandemia, o erro é seu, pois o governo está batendo um bolão na economia

Hildegard Angel

Você, que está esquentando a cabeça numa fila da Caixa Econômica, para receber a ajuda emergencial de R$ 600; você, que perdeu, ou vai perder, seu emprego na Petrobras, nos Correios, na Caixa, na euforia das privatizações; você, que acreditou na cloroquina, comprou, e não viu os esperados bons resultados; você, que perdeu sua pessoa amada, porque não conseguiu vaga em leito ou em UTI, e quando conseguiu não havia mais tempo para a salvação; você, que teve seu salário reduzido em 30% durante a pandemia; você, que ficou desempregado, pois, sem obter o apoio governamental para subsistir, a micro ou média empresa em que trabalhava fechou as portas; você, que é operário da construção pesada desempregado, e viu as maiores empresas brasileiras quebrarem, pela ação da Lava Jato em conluio com o FBI, para criar mercado para as americanas…

Você, você, você e você têm agora grandes motivos para estar satisfeitos com a gestão econômica do Brasil, que se tornou “case” internacional de sucesso, durante esse duro período da pandemia, batendo todos os recordes de vendas de carros de luxo Porsche no Brasil.

Um crescimento de 90% em relação a 2019. Foram 1.535 veículos da marca alemã vendidos no primeiro semestre de 2020, um número próximo às 1.849 vendas realizadas em todo o ano de 2019. A grande estrela entre as linhas da marca negociadas foi o Porsche 911. Um crescimento de 432% em relação a 2019, com 601 veículos comercializados.  O 911, em suas variadas versões, custa de R$ 519.000 a R$ 769.000.

E chega no segundo semestre ao Brasil o novo Porsche 911 Turbo, um “míssil” de 650 CV, por R$ 1,3 milhão

E quem está comprando, tão avidamente, esses brinquedinhos? Vamos imaginar… Podem ser os quatro banqueiros brasileiros, os milicianos de Rio das Pedras, os plantadores de laranjas, o agronegócio que exporta para a China, os desmatadores invasores de terras, os bispos evangélicos, os grandes empresários da cocaína, os youtubers e blogueiros financiados pela Secom, os atravessadores das vendas de EPIs, os gestores da saúde, alguns sendo agora presos, os bem aquinhoados do Judiciário, o fabricante da cloroquina…

Enfim, que o dinheiro existe, existe, você é que está no segmento errado.

 

Distraído pela pandemia e os roubos dos gestores da saúde, o Brasil sofre um golpe mortal

Hildegard Angel

O Governo quer e vai enfim privatizar a Petrobras. É uma ação contínua, desestabilizadora e demolidora contra a maior estatal do país, orgulho brasileiro em todos os aspectos – do econômico ao científico. Uma conquista de há 70 anos, desde a campanha “O Petróleo é nosso”. E há 70 anos hienas vorazes tentam privatizá-la, desmembrá-la, despedaçá-la. Uma delas, o senador José Serra, perseguiu obstinadamente esse objetivo de destroçar nosso maior orgulho nacional. Os governos do PSDB não conseguiram embutir tal meta no balaio de sua questionável “Privataria tucana”. Fracassado nas eleições e com essa ideia fixa em mente, o tucanato participou do conluio golpista de 2016 contra o Brasil.

E um fato histórico: o maior plano de Privatização da Petrobras foi o de US$ 57 bilhões de Aldemir Bendine, presidente no governo de Dilma, que foi salva pelo tempo, dada a sorte de sua derrocada, que a impediu de implementar esse projeto, preservando sua biografia de tal calamidade. O Governo Temer colaborou com esse processo, escalando Pedro Parente para fazer o serviço sujo, no que ele se esmerou.

A Lava Jato entrou feito um trator para cumprir o projeto destrutivo, lesa-pátria. A mídia corporativa apoiou, mentindo deslavadamente sobre uma suposta “Petrobras quebrada”. Pura ficção, com os jornalistas “economistas” de aluguel distorcendo resultados, inventando prejuízos, mentiras e mentiras e mentiras descaradas. Quanto essa mídia e esses mercenários da pena não botaram nos bolsos em prejuízo do nosso país?

O Ministério da Economia uiva de contentamento, estoura champagne, esfrega as mãos de cobiça, prenunciando o momento de passar o rodo geral. O que restou da empresa será 35% reduzido. Equipes técnicas, compostas por engenheiros, geólogos, cientistas, pesquisadores, formadas ao longo de décadas, serão desmontadas com um peteleco. Nunca mais teremos outras iguais. Essa redução de pessoal fará a empresa, que no Governo Lula chegou a empregar 80 mil, voltar aos 35 mil funcionários do tempo de FHC.

Contudo, o que esses grandes vilões do capitalismo pretendem mesmo é zerar a Petrobras. Terra arrasada. O objetivo é acabar com tudo, vender todos os ativos rentáveis, e deixar uma casca vazia. Restará um belo prédio ocioso, bonito por fora, oco por dentro. O popular “bambu florido”.

A Petrobras não pode ser toda vendida no balcão porque, do tamanho que ela é hoje, não há empresa no mundo nem consórcio com capacidade de compra. Por isso, esse seu fatiamento, como se faz com o filet mignon do açougue.  E o povo brasileiro nem informado é a respeito. O noticiário distrai a população com os desvios criminosos dos gestores da saúde, pseudo-licitações e superfaturamentos, que não passam de migalha inexpressiva, se comparados ao gigantesco escândalo que é o fim da Petrobrás.

Não vamos, porém, ser injustos. Todos os nomes aqui citados são meros peões de um grande xadrez em que o rei não usa coroa, usa uma cartola listrada de vermelho e branco, com estrelinhas no fundo azul.

Com as manifestações populares inviabilizadas pela pandemia, passa tranquila a revoada da águia e dos urubus. As aves de rapina de sempre. Ficará a carniça.

 

Thereza de Souza Campos e a Dinastia das Therezas da sociedade carioca

27 de junho 2020 – Instagram – da série “Memórias Sociais Brasileiras”

Thereza de Souza Campos posou com essas pantalonas de Mary Angelica para a coluna de Nina Chaves, O Globo, em 1969, em sua casa da Rua Mascarenhas de Moraes, em Copacabana

A homenagem à Thereza de Souza Campos, , que nos deixou recentemente, o grande mito da elegância brasileira, presença obrigatória em todas as listas das “10 Mais” do país nas décadas de 50, 60 e 70, a começar pelas de Jacinto de Thormes e, depois, as de Ibrahim Sued.

Thereza foi uma lenda, no tempo em que as mulheres da chamada “alta sociedade” eram as celebridades das capas das revistas (como esta aqui na página, da Manchete), e eram referências de moda, tendência, comportamento para todo o Brasil. Thereza era cantada em versos e canções populares. Qualquer etiqueta implorava para que ela usasse suas roupas, acessórios, joias, porque tudo que Thereza tocava virava ouro.

Era a grande “influencer” da época, ao lado de outras, como Lourdes Catão, Therezinha Muniz Freire, Guiomar Magalhães, Dolores Guinle. O bom gosto no vestir de Thereza se repetia na decoração. Depois de seu divórcio de Didu Souza Campos, ela se dedicou-se profissionalmente, e com sucesso, à decoração. Entre outros trabalhos, decorou o iate de Luís César e Glorinha (Pires Rebello) Magalhães. Mais tarde, casada com Sua Alteza Imperial, o príncipe Dom João de Orleans e Bragança, ela passou a ser chamada de “princesa dona Thereza”. Durante este casamento, ela decorou de modo magnífico a casa de Parati de Dom João, que ate hoje é referência dos editoriais de decoração. Além de ficar viúva de Dom João, Thereza sofreu a grande perda de seu único filho, Diduzinho, que desde jovem padeceu de uma doença nos olhos.

Nascida em Ubá, Minas Gerais, ela veio da Zona da Mata mineira para brilhar na nossa então Capital Federal e ensinar às mulheres como serem clássicas e originais ao mesmo tempo. Os Souza Campos eram a “primeira família” do glamour e da sofisticação. Depois daquele “reinado” do noticiário social, Thereza só poderia mesmo se casar com um príncipe de verdade, direto descendente de Dom Pedro. Ela soube enfrentar com dignidade e discretamente o declínio de sua situação financeira, e mesmo o físico, frequentando apenas pequenos grupos fechados da “aristocracia” social carioca. E sempre encantava. Espirituosa, inteligente, mordaz, enriquecia os ambientes com sua presença. Jamais abdicou da elegância. Ela figura na Coleção de Moda Grandes Personalidades, na Casa Zuzu Angel, Museu da Moda, com um conjunto preto de Ungaro, que bem expressa seu estilo.

Thereza, em capa da Manchete de 1958, com look clássico e severo, aparentando muito mais idade do que tinha na época

Thereza de Souza Campos enviou este seu terninho clássico do estilista francês de origem italiana Emanuel Ungaro, como doação para o museu da moda Casa Zuzu Angel, acompanhado de seu cartão brasonado de Princesa Orleans e Bragança.

R.I.P. Thereza, que nos deixou aos 93 anos, mesma idade com que partiu Lourdes Catão, morta pelo Covid. Aliás, a última vez em que encontrei Thereza foi no almocinho de Lourdes, pelo aniversário de Maria Alice de Araújo Pinho, todas elas amigas.

Eu costumo dizer que a sociedade carioca tem a “Dinastia das Therezas”. Algumas já se foram, como Thereza de Souza Campos, Thereza Muniz Freire, Thereza Castello Branco, Carmen Therezinha Mayrink Veiga. Outras ainda estão entre nós, encantando com seu bom gosto e a elegância. São Maria Thereza Williams, Therezinha Noronha, Thereza Muniz.

A força da beleza, do caráter e do temperamento de Martha Rocha

Hildegard Angel

Num tempo em que celebridades são desovadas por segundo, e não mais a cada 15 minutos, como previu Andy Warhol, o radar de quem é de fato famoso fica meio embrutecido pelo excesso de oferta de celebs no mercado. É quando morre uma celebridade de fato que a opinião pública se dá conta da força perene da fama quando é legítima. Assim acontece agora com Martha Rocha, cuja morte foi anunciada ontem, e a mídia não para de falar a respeito, nem há de parar tão cedo.

Martha foi uma famosa tão famosa, que tudo considerado extraordinariamente bonito no Brasil foi rebatizado com seu nome, a partir do título da Miss Brasil 1954. A água marinha escura, de melhor qualidade, aquela do colar que Assis Chateaubriand presenteou à Rainha da Inglaterra, era a “água marinha Martha Rocha”. A torta mais fotogênica das casas de Café Colonial de Gramado chama-se “torta Martha Rocha”. O mármore bege Travertino virou “mármore Martha Rocha”, até porque era tão baiano quanto a Miss Brasil das “duas polegadas a mais, e logo nos quadris, tem dó, seu juiz, tem dó” –  conforme a marchinha de 1956, que lamentava a perda do título de mais linda do universo pela baiana loura, de olhos translumbrantemente azuis. O Chevrolet 1957 era a “pick-up Martha Rocha”, com o mesmo arredondado dos quadris em sua carroceria. A faixa de Miss Brasil 1954, desfilada por Martha, se tornou um troféu que ombreava em carisma e importância com a Taça Jules Rimet, levantada por nosso Bellini no gramado da Suécia, na Copa de 1958, ao som de “A Copa do Mundo é nossa, com brasileiro, não há quem possa”.

Martha Rocha era um verdadeiro Midas para a mídia. Foram quatro décadas de capas de revistas. Na O Cruzeiro, só dava ela. A Manchete, quando queria aumentar a tiragem, punha Martha na capa. Uma dessas capas, aliás, lhe custou um grande amor, o empresário Chico Catão, casado, com quem Martha vivia romance proibido, muito discretamente, como era de seu perfil. “Ninguéns” sabiam. E um dos “ninguéns”, naturalmente, era esta colunista, que numa reunião na Av. Delfim Moreira percebeu o namorico de Martha e Chico, numa saleta contígua ao salão da festa. Até que, numa noite de estreia no Theatro Municipal, um jornalista afoito resolveu emplacar mais uma capa da Manchete com Martha, e a juntou com Carlos Nuzman para uma foto, e tascou a manchete: “O novo amor de Martha Rocha”. Chico não perdoou. Martha nunca mais conseguiu falar com ele, nem mesmo ante os apelos da melhor amiga da miss, Bebeth Freitas, emissária das explicações que Catão não quis escutar.

Foi só após esse rompimento que começou o namoro dela com Nuzman, envaidecida pela repercussão da revista e a diferença de idade – ele quase 10 anos mais jovem.

Martha casou-se duas vezes. A primeira, com o banqueiro português Álvaro Piano, dono de casas de câmbio em Buenos Aires e Lisboa, um verdadeiro cavalheiro. O casamento na Candelária foi um acontecimento nacional. Tudo gerou comentários, até o fato de ela ter usado um relógio com o vestido de noiva. E no pulso errado, o direito. O que deve ter sido mais pela inversão da foto na diagramação da revista do que por erro de Martha. Mas isso rendeu.

Viúva de Álvaro, Martha se casou com outro milionário, Ronaldo Xavier de Lima, proprietário de uma grande seguradora, que foi um ótimo pai para os dois filhos de Martha com Álvaro, e a filha que tiveram. Eles brilharam nas festas da sociedade carioca, ao lado de outros casais de homens bem sucedidos com misses Brasil, como Alberto Pittigliani com Terezinha Morango, e Jackson Flores com Adalgisa Colombo.

Apaixonada, Martha não admitia infidelidades de Ronaldo, e seu temperamento forte falou mais alto quando surpreendeu o marido em pleno ato de adultério com a empregada doméstica, no quarto de serviço. Ela foi lá dentro, pegou um revólver e deixou a marca de sua personalidade na nádega direita do marido. Não houve registro policial, mas em sociedade tudo se soube.

O sorriso iluminado, com dentes perfeitos, levou a imprensa a afirmar nos obituários que Martha Rocha era uma mulher feliz. Não era. Foi uma sofredora. Vítima de décadas de adulação à sua beleza, ela se tornou impositiva e inflexível. Não abria mão de suas posições. Isso lhe valeu muitos rompimentos e desgostos. Entre seus maiores e mais fiéis amigos, estavam o cabeleireiro Jambert e seu companheiro, Martin Trinchant, espanhol milionário, com título de nobreza, apaixonado por ópera. Eles tomaram a si os cuidados e as despesas de Martha, quando ela se viu desprotegida e sem recursos, após uma puxada de tapete que levou de seu antigo cunhado, Jorge Piano.

Martha confiou à casa de câmbio de Piano todo o dinheiro que guardava para seu sustento, proveniente da venda da cobertura na Av. Atlântica, para ser transformado em dólares e depositado no banco de Piano em Nova York. Um dos filhos de Martha era casado com uma filha de Jorge, e tiveram filhos. Na véspera de Jorge Piano fechar a loja no Rio, e embarcar para Nova York fugindo dos correntistas, eles jantaram todos numa confraternização familiar, Martha, Jorge, filhos e netos. Jorge não deu um pio sobre a viagem que faria, até marcaram um novo jantar. No dia seguinte, Martha se viu pobre. Isso não é segredo, Martha Rocha, com a franqueza que era a sua marca, relatou o dissabor a todos os amigos.

A última vez em que estivemos juntas foi quando ela veio em minha casa e trouxe sua faixa de Miss Brasil 1954, as últimas peças de roupa que considerava apresentáveis, seus troféus e um belíssimo portrait pintado no ano do concurso de miss, com um vestido verde enfeitado com galhos de café, produzido para divulgar nossa indústria cafeeira. Eram suas doações ao Museu da Moda do Instituto Zuzu Angel. Sabendo de sua condição difícil, fiz de tudo para remunerá-la, Martha não aceitou. Era uma mulher de caráter.

Vestido de festa doado ao acervo do Museu da Moda/Casa Zuzu Angel, por Martha Rocha, com a faixa de Miss Brasil, de 1954, já exposta pelo Instituto Zuzu Angel em mostra no Centro Cultural Banco do Brasil (mostra de Lilian Pacce)

Almoçamos, ela, nossa amiga comum Chica Dutra e eu, e passamos a tarde, as três, em conversas, risos, lembrando coisas boas e ruins, como amigas de fato. Martha já estava vivendo em Niterói. Ela contava e contou com o apoio de seus dois filhos homens, até o fim. Não foi abandonada, mas não pôde manter o padrão da diva que sempre foi. Talvez por isso, não convidava nem recebia em sua casa modesta.

Os últimos tempos, já debilitada, precisando de cuidados contínuos, passou numa casa para idosos em Icaraí. Ela fumava e, como consequência, tinha enfisema pulmonar.

Foi sincera sempre, foi imperiosa sempre, foi verdadeira sempre, foi linda sempre.

   Martha Rocha e seu grande e generoso amigo Jambert (Foto Cristina Granato)

Duas louras estonteantes que marcaram a vida brasileira: Tônia Carrero e Martha Rocha (Foto de Cristina Granato)

BRASIL SÓ VAI MUDAR SE SUA ELITE MUDAR

Hildegard Angel

 

Escrevo sob a inspiração das recentes e magníficas entrevistas de Lula em liberdade, único líder brasileiro de primeira grandeza vivo, em plena lucidez e vigor para a luta.

Apesar de todas as mazelas que se multiplicam a cada dia e pesam sobre nosso cotidiano, somos abençoados por ter um Lula, que nos fala à consciência, ao coração, à alma. Um farol. O maior Presidente da República de nossa História, e que, justamente por ser tudo isso, sofreu a maior campanha já movida contra um político em nossa vida contemporânea.

Lula é perigoso, sim, porque é revolucionário. Tudo o que fala, pensa, faz é transformador. Como foram seus dois governos, retirando do Mapa Mundial da Fome um país atavicamente indigente, onde a fome está tão entranhada e normalizada, que, em vez de escândalo e dor, suas representações nas artes são saudadas pela beleza pictórica, não pela agonia que deveriam inspirar.

Nas paredes dos salões da opulência, os retirantes de Portinari, com suas crianças esqueléticas, contrastam com naturalidade, e sem causar escândalo, com os tapetes persas.

O Brasil caminhou um longo percurso de sofrimentos e dificuldades, desde o seu Descobrimento. Séculos em que apenas os da elite puderam descansar a cabeça nos travesseiros com tranquilidade, sabendo que no dia seguinte teriam um teto, alimento para os filhos, condições para as despesas básicas. Os miseráveis, os pobres e mesmo a classe média sempre provaram o amargo pão dos obstáculos e injustiças sociais.

Um país em que a ignorância foi ardilosamente cultivada para que os mesmos poderosos de sempre prevalecessem, controlando o domínio do saber. Um país em que ser analfabeto era até há pouco tempo visto com naturalidade. E não possuir sequer certidão de identidade, um lugar comum. Um país que historicamente demonizou seus mártires e incensou seus demônios.

Elite racista, age como restrita sociedade de escolhidos, sem qualquer responsabilidade sobre o que lhes acontece ao redor, ungidos que mal enxergam as pessoas que os servem, olham através delas, como se não existissem. O pobre brasileiro é transparente. Seus nomes e rostos não são lembrados por aqueles a quem prestam zelosos serviços, mesmo que por longo tempo.

E é atravessando esta fase tenebrosa pandêmica, com os mortos se amontoando nos corredores dos hospitais e nos gráficos das estatísticas, que essa deformação comportamental dos donos do dinheiro e do poder, seu alheamento sobre o que parece não lhes dizer diretamente respeito, mais inspira nosso desprezo. A economia sempre à frente da vida humana. Esta é a pandemia à brasileira.

Elite que sempre ignorou e normalizou a corrupção, quando esta lhe serve, e que se faz de chocada e ofendida quando os corruptos não são os frequentadores de seu mesmo clube.

Sempre ouvimos que atrás de grandes fortunas há grandes crimes. Crimes contra o erário, impostos não pagos, poluição de águas e terras antes semeáveis, em nome de seus empreendimentos econômicos; poluição do ar que respiramos; devastação das florestas que purificam o ar, para fazer delas pastos ou contrabandear sua madeira; bancos que falem, evaporando junto economias de vidas inteiras. Até mesmo na caridade, obras, que se dizem generosas com os pobres, não sem antes drenarem para suas contas pessoais parte dos quinhões arrecadados com festas, convescotes, rifas, boletos.

Não basta o povo adquirir consciência sobre nossa realidade, como agora ocorre. Nada se modificará, todo progresso voltará a ser retrocesso, se não houver mudança radical e estrutural no comportamento da elite brasileira. Caso contrário, recorrendo ao tão explorado Giuseppe Lampedusa, estaremos sempre andando em círculos, no exercício de mudar para não mudar, andar para não caminhar, conquistar para em seguida capitular.

Uma trepidante aventura da diplomacia brasileira que merecia ser seriado do Netflix

O *Embaixador Marcio de Oliveira Dias abre seu arquivo de memórias diplomáticas, e faz aqui um relato pitoresco sobre as peripécias, envolvendo a colaboração de um contrabandista americano, que propiciaram trazer ao Brasil a espécie de carneiro Merino australiano. E hoje o embaixador é chamado pelos pecuaristas do Rio Grande do Sul, onde a espécie prospera, de “o padrinho de todos os merinos brasileiros”.

“Em 1969, fui transferido do meu primeiro posto, Nova York, onde consegui ser meu próprio chefe, à frente do Setor de Promoção Comercial do Consulado-Geral. Como gostei muito da experiência, busquei um pequeno Consulado, onde pudesse continuar a sê-lo. E fui designado Cônsul em Sydney, na Austrália.

Serviço monótono, pouco que fazer, vida sem sobressaltos, mas também sem graça. Apesar das excelentes ostras e das mulheres fisicamente interessantes (eram como as inglesas, mas com um visível toque calipígio), a distância do Brasil e a falta de interesses recíprocos não emprestavam maior substância ao trabalho do posto. Assim, pensava em lá não quedar-me por mais do que um mínimo de tempo aceitável.

Entretanto, houve um episódio extremamente interessante e digno de nota, sob e o qual mantive silêncio público por muito tempo, mas que hoje, passados já mais de 50 anos, parece-me até didático recordar. Começarei pelos antecedentes.

Convidado por um vizinho para jogar pôquer, um dos parceiros, simpático mas algo peculiar, era um americano, proprietário de um velho avião DC3. No dia seguinte, o vizinho esclareceu-me que o americano vivia de trazer, com seu avião, cigarros para a Austrália. Como não me pareceu que um contrabandista fosse companhia ideal para um cônsul estrangeiro, não mais aceitei convites para jogar.

Nesta altura, já em meu segundo ano na cidade, realizava-se a “Sydney Spring Fair”, evento anual de importantes transações na área agro-pecuária. E os jornais faziam fortes referências ao fato de que, neste ano, a Austrália permitiria a exportação de reprodutores merino, raça de carneiros famosa pela qualidade de sua lã. No ano anterior também haviam feito idêntico anúncio, mas os adquirentes dos carneiros não
puderam depois tirá-los do país.

O merino australiano tem alta reputação mundial pela qualidade e quantidade de sua lã. Basta dizer que o recorde mundial de preço por um dos seus reprodutores foi de 450.000 dólares australianos (então de valor superior ao americano) pagos em 1988. E o recorde de produção de lã da raça é de mais de 40 quilos de lã numa só tosquia.

Um parêntesis para explicar a situação. Na política australiana, alguns partidos eram verdadeiros “lobbies” de interesses. Assim, havia um partido ligado aos criadores dos carneiros, que tinham grande empenho em vendê-los ao exterior. Outro partido representava os interesses dos fabricantes de lã, que não queriam concorrência externa. O governo buscava atender ora a uns, ora a outros, se possível a ambos. Como a proibição de exportação dos reprodutores adquiridos com a garantia do governo tinha sido mal vista pela opinião mundial, os compradores internacionais
voltaram à “Spring Fair” para uma vez mais tentar levar os carneiros garanhões.

Dentre os estrangeiros que vieram à feira, estava um grupo brasileiro, ligado ao então Ministro da Agricultura, o gaúcho Cirne Lima. Explicaram-me a situação e expuseram seu receio de que, depois de investirem uma quantia nada desprezível, não pudessem tirar os carneiros da Austrália.

Lembrando-me do episódio do pôquer com o contrabandista de cigarros, ocorreu-me uma ideia, que lhes expus, dizendo que poderíamos tentar uma saída caso as autoridades australianas, como suspeitávamos, fugissem uma vez mais às garantias de exportação dos animais. Entusiasmadamente recebida a hipótese, expliquei que eu teria inicialmente de buscar a aprovação do Itamaraty, para o que contribuiria uma pressão do Ministério da Agricultura brasileiro. E, naturalmente, a concordância do americano contrabandista.

Mandando às favas minhas restrições à “profissão” deste último, chamei-o e diretamente perguntei se, assim como ganhava a vida “bringing in” para a Austrália, não estaria disposto a faturar, “taking out” carga de nosso interesse. Acedeu com o maior gosto.

Aí começou um trabalho paciente, que teria de ser feito com rapidez, pois diz-se que os reprodutores merino não costumam conservar sua potência por muito tempo, aparentemente fatigando-se do seu agradável mister.

A dificuldade inicial era a de que o Consulado, por não lidar com assuntos confidenciais, sequer dispunha de código para comunicações. Tive de expor o esquema ao Itamaraty por telegrama secreto a ser enviado via Embaixada em Camberra, e receber a resposta pela mesma via. Para isso fui duas ou três vezes à capital, distante pouco mais de 200 quilômetros (o que fiz com prazer ao volante da minha querida Alfa Romeo Duetto Spider, certamente chegando perto do recorde de tempo para viagens entre as duas cidades).

O esquema era o de mandar os carneiros para Noumea, na Nova Caledônia, donde embarcariam imediatamente num vôo da Air France para o Brasil. Os contatos com a Air France foram providenciados, confidencial e rapidamente, pelas autoridades brasileiras.

A área competente do Itamaraty, dirigida pelo excelente profissional Embaixador David Silveira da Motta, aprovou o plano e deu-me sinal verde para implementá-lo.

Como desconfiávamos, o lado australiano tinha suas idéias para barrar a saída dos carneiros. Assim, embora o Governo mantivesse que permitiria a exportação, o Sindicato de Carregadores do aeroporto anunciou que não permitiria o reabastecimento dos aviões que fossem transportar os animais. E com a
distância da Austrália, nem pensar em não reabastecê-los.

Comprados os reprodutores a peso de ouro, preparei a documentação para exportação e a submeti às autoridades locais. Advertido de que a exportação poderia não ocorrer, devido à ação do sindicato, insisti (com minha melhor aparência inocente) na legalização dos documentos de qualquer maneira. O que foi finalmente conseguido com a oferta amigável de uma caixa de “whiskey” ao claramente incrédulo agente.

Procurei, por discrição profissional, não inteirar-me dos demais detalhes da operação, deixando-os às competentes mãos do Itamaraty e do Ministério da Agricultura.

Tudo funcionou muito bem. Com os carneiros já no Brasil, sou um belo dia convocado pelo Governador. Recebido friamente, pergunta-me a autoridade, sem maiores rodeios, se eu havia contribuído para a saída dos reprodutores da Austrália. Respondi tranquilamente que sim. Subindo o tom, pergunta-me o Governador se eu não sabia que a exportação dos animais estava proibida pelo sindicato. Respondi-lhe, com a mais deliberada tranquilidade, que eu era acreditado junto ao seu Governo, em cuja palavra
publicamente difundida. acreditara, e não junto ao Sindicato dos Carregadores de Kingsford Smith (o aeroporto de Sydney).

A expressão de ódio e frustração do Governador é das melhores lembranças que tenho da carreira…

Furioso, disse-me que soubera que eu estava viajando em férias ao Brasil e que não pretendia voltar. E acrescentou raivosamente que era bom que não voltasse. Concordei com grande prazer e despedi-me, sem que ele se dignasse a estender-me a mão. O que só fez aumentar minha satisfação com a entrevista…

Na volta para casa, não consegui conter o riso. E até hoje dou boas gargalhadas ao lembrar-me do episódio. Anos mais tarde, já Cônsul-Geral em Buenos Aires, tive a satisfação de, numa passagem por Uruguaiana, ser efusivamente saudado por criadores gaúchos como “o padrinho de todos os merinos brasileiros”…

*Márcio de Oliveira Dias é embaixador aposentado, tendo representado o Brasil em vários postos importantes no exterior, com sua competência e seu apurado senso de humor e de observação, o que proporciona aos que o conhecem acesso a relatos espirituosos e palpitantes sobre a vida de um diplomata de carreira. Aqui no blog, ele nos premia com uma dessas suas interessantes experiências.