A partida da Primeira e Única, Carmen, o grande mito da sociedade brasileira

Carmen Mayrink Veiga em foto de Eduardo Clark/PLUG – Arquivo Hildegard Angel

Um amigo sugere o título “Morre a última grande dame“. Boa sugestão. Mas não condiz com a realidade. Grandes damas ainda temos poucas. Carmen não foi a última, foi a Primeira e Única, como eu a chamava. Mais do que grande dame, era grande personalidade, grande formadora de opinião, o maior mito da alta sociedade brasileira. Único de abrangência nacional, galgando espaços internacionais. Soube desempenhar seu papel como verdadeira diva, no exclusivo palco dos aristocratas do dinheiro, do poder e dos sobrenomes. Ela fez por onde. A postura sempre altiva, o esnobismo, a seletividade foram elementos importantes na construção de seu mito. As glórias não lhe caíram no colo, ela teve mérito e tenacidade. É nos detalhes sutis que as pessoas se distinguem das outras e são alçadas ao pedestal de nossas admirações. O diferencial de Carmen era ser sempre a mesma com qualquer um, fosse ele o Bill Gates, o Roberto Carlos, um artista anônimo ou o verdureiro da esquina. Carmen conversava igual, tratava igual, emitia os mesmos conceitos, que para alguns soavam como vindos de um universo paralelo. Era igual.

Falar com Carmen Mayrink Veiga foi um dos desafios profissionais que precisei vencer logo aos 18 anos. Não que ela me fosse inacessível, ao contrário. Tinha recebido de minha chefe, a colunista social de O Globo Nina Chavs, a relação de suas fontes diretas, que eu podia contatar quando ela viajava. E lá estava ela, a  diva, a Carmen!

Tímida, atriz, alheia àquele mundo, apesar de curiosa dele, eu precisava reunir a coragem de um acrobata em salto sem rede, sempre que tinha que discar o número de Carmen e ser atendida pelo copeiro Manuel, com empostação de Alec Guinness fazendo mordomo em filme inglês. Eu, respeitosamente, o chamava de “seu Manuel”.

E lá vinha Carmen, transbordando sofisticação. Havia chegado de uma temporada de caça na Áustria. E descrevia os castelos, as roupas, os jantares, os faisões servidos nas travessas ou enfeitando os chapéus das caçadoras, os pavilhões, as matilhas de cães e as cabeças coroadas participantes, príncipe tal e marquês qual, e os nomes se sucediam, Schlumberger, Rothschild, Ali Khan. E tudo acabava em Paris, para onde todos retornavam, enroscados nas mantas de vison das poltronas de seus jatinhos particulares. E eu anotando em ritmo de taquigrafia, para não perder uma vírgula, um respiro, uma entonação, porque tudo o que ela falava, e do jeito que ela dizia, era tão diferente e interessante. Sem dúvida se, naqueles tempos, já se pensasse em Luxo como disciplina de formação em Marketing, Carmen teria sido a mestra decana.

Mestra, Carmen efetivamente foi, informalmente. No Brasil, ela compartilhava aquele mundo inatingível com os sequiosos comuns mortais à sua volta. Era fonte inesgotável de aprendizado. Quer através das informações aos colunistas sociais, das suas entrevistas ou das atenções aos amigos. Se encontrasse algum livro de moda ou de decoração que interessasse ao costureiro Guilherme Guimarães, tratava de trazer com ela, sempre com uma dedicatória com suas impressões e anotações dos trechos que deveriam interessa-lo. Era um “oráculo do luxo”, distribuindo saberes e refinamentos. O bijoutier Alberto Sabino, os estilista Liliane Sirkis, Lino Villaventura e Heckel Verri, a joalheira Laja eram alguns de seus discípulos, e também para as amigas.

Quando me casei pela segunda vez, já aos 38 anos, pedi a Carmen sugestão de um vestido. De Paris, ela me enviou o recorte de um modelo de Yves Saint Laurent, um tailleur longo, e recomendou: “Faça com a Liliane Sirkis da Casa Colette. Ficará perfeito”. E ficou. Até o bordado, Liliane mandou fazer no mesmo bordador de YSL em Paris. Conselho de Carmen não tinha erro.

Mas havia certos conselhos… Quando fiquei noiva de Francis, Carmen nos convidou para almoçar com ela em seu clube. O colunista Zózimo havia publicado que eu estava namorando um “empresário armênio”. E a tribo carioca logo achou que devia ser caixa alta. Tinha quem se dirigisse a ele falando em inglês, em francês. A gente achava graça. Estávamos de partida para uma peregrinação a Medjurgorje voltando por Paris. Carmen resolveu aconselhar o noivo. “Qualquer vestidinho para de dia, de alta costura, em Paris, está custando 30 mil dólares. Os de coquetel custam 80 mil dólares pra cima. Então, quando Hilde for usar os vestidos que você vai comprar, ela tem que ficar atenta, porque essa coisa de comer caviar em pé acaba com qualquer roupa”. Apertei a mão do Francis com medo de ele se levantar da mesa pra nunca mais. E Carmen nem aí. “Outra coisa, Francis. “Não dê bugigangas de 100 mil dólares pra Hilde. Essas joias perdem todo o valor na revenda. O que vale é a pedra. Compre joias importantes para ela”. Foi aí que não me contive. “Ô, Carmen, você quer que eu perca o noivo antes da viagem?”. E caímos os três na gargalhada.

Carmen foi nossa madrinha. Vestiu amarelo. Cerimônia na Candelária às 6 da tarde, pedi chapéu a todas as madrinhas. Carmen usou arco e laço nos cabelos soltos. Estava um deslumbramento. Algumas vieram depois me dizer: “Como uma mulher daquela idade bota um laço no cabelo?”. “Que idade?”, perguntei. Ninguém sabia a idade de Carmen. Ela jamais revelou. E deve ter adorado ver a imprensa brasileira em peso errar sua idade nos obituários.

Para Carmen, não havia idade, havia aparência. Se o rosto “segurava”, podia usar cabelão. E seus cabelos se mantiveram longos até o fim. Usar joias com brilhantes de dia não pode? “Bobagem das brasileiras”, dizia. E usava. Se as pernas estavam bonitas, podia mostrar. E ela vestiu as saias curtas que quis, até ser obrigada a utilizar a cadeira de rodas. Sentava-se nela como uma rainha no trono, envolta em sedas e xales de voile ou cashmere, que movia com feminilidade e elegância. Em seu show da vida, a cadeira de rodas era simples figuração. Ela, a protagonista.

Quando os Mayrink Veiga perderam a fortuna, as cortinas não se cerraram. O interesse da imprensa permaneceu igual, o mundo social continuou a girar em torno de Carmen, Primeira e Única. Os holofotes em potência plena. A fortuna era componente importante, mas Carmen era a luz.

A família era seu interesse principal. Era 100% a favor de manter o casamento, custasse o que custasse. E ficou muito abalada com a morte de Tony. Imaginava que iria antes dele. Nos últimos tempos, cansada e entristecida, só falava em morrer. Queria morrer. No seu aniversário, em abril, segurou-me a mão e se despediu de mim. Achava que a morte logo a levaria. Brinquei, sorri, saí do quarto e chorei. Carmen Única não tem reposição. Éramos só sete amigas e a família. Carmen não conseguiu deixar o leito para nos encontrar na sala. O bolo, carregado por seu filho Antenor, os parabéns, o champagne foram em volta de sua cama, as amigas todas muito bem vestidas e arrumadas. Carmen abriu largo sorriso, estava feliz. Um raio de glamour iluminou aquele seu momento. Ela se alimentava da beleza e do glamour. E beleza plantou por todos os caminhos em que passou.

Resistiu o mais que pôde. A resistência consistia em encontrar ânimo para se preparar para sair, sempre impecável, para almoçar ou jantar (preferia almoço) com amigos ou prestigiar algum lançamento da neta joalheira, Maria. Uma onça matriarca.  Sua paixão pelos gatos era legítima e absoluta. Possuíam entre si uma conexão que só a ciência para explicar no futuro. Tudo dela tinha gato. Nos bilhetes e cartões, ao lado da assinatura, um gatinho desenhado (guardei todos, nesses 50 anos), ou selava o envelope com o cromo de um gato. Nas paredes de seu banheiro. Objetos de gato pela casa. Quando morreu, Top Show e Sylvie foram dos primeiros a perceberem que ela não estava mais lá.

Eliane, a gentil, dedicada, amorosa acompanhante de Carmen nesses anos de dor, pediu aos padres José Roberto e Jorjão para fazer uma oração após a missa de corpo presente no Memorial do Carmo. O caixão estava fechado (pedido dela, segundo Antonia). Sobre ele, um ramo de orquídeas brancas, ao qual Antonia depois juntou um buquê de rosas vermelhas, as rosas de Santa Therezinha, devoção de Carmen Therezinha. Audiência em círculo recuado, contornando o caixão numa distância respeitosa e solene. Todos de preto ou preto e branco. Homens de terno. Muito formal. Reverência a uma grande dama da elegância.

De frente para o caixão e de costas para nós, Eliane falou seu pranto. Uma oração contundente como são as dos fiéis evangélicos. Eliane atribuiu a Jesus e apenas a Jesus todas as superações alcançadas por Carmen, que, numa das muitas idas e vindas ao hospital, morreu e depois sobreviveu por um ano. Eliane emocionou a nós todos. E fez uma revelação: “Antes de morrer, ela disse “minha mãe, eu estou vendo você””.

A mãe de Carmen chamava-se Lourdes. Há meses fui tomar um chá em casa com Carmen. Só nós duas. Ela falou e falou muito de seu pai, Enéas Solbiati, como se quisesse me fazer depositária das informações, para uso futuro. Descreveu a beleza do pai, a amizade entre eles. Foi o homem mais bonito que conheceu. A altura privilegiada. A elegância, sempre de ternos de linho branco, de sapatos bicolor de pelica. E seu sucesso no mundo financeiro, com ocasionais insucessos, dos quais sempre conseguia se reerguer. Lembrou dos bons amigos que ele tinha em São Paulo, como Francisco Scarpa e o conde Matarazzo, e dos tempos da fazenda em Pirajuí.  Quando se referiu à mãe, foi de passagem, “mamãe era elegante, mais para baixa, um pouco para gordinha…”. Eu outra ocasião, contou-me que sua mãe morreu depois de muito sofrimento, vítima de uma doença degenerativa. Morava em São Paulo aos cuidados da irmã de Carmen, que para vê-la vinha de Paris, onde vivia nessa época. Mas Carmen não gostava de falar coisas tristes. Era alegre.

No dia em que morreu, Carmen Mayrink Veiga, brasileira do Hall of Fame das Mais Bem Vestidas do Mundo, vestia uma camisola verde água, combinando com o cinza claro dos bordados dos lençóis. Eliane a ajeitou nos travesseiros para dormir, como sempre fazia naquele horário. Eram cinco e meia da tarde. Carmen virou a cabeça para trás e fechou os olhos, para sempre. Eternizou-se.

Perseverante, tenaz, delicada, com rara noção de qualidade e muito talento, mesmo sob o impacto das dores agudas e contínuas de suas duas últimas décadas, manteve a alegria, que fazia dela uma companhia fascinante, até se deixar vencer pelo cansaço e a tristeza.

Tinha tiradas como: “… jóias, claro que quem pode continua comprando, mas dificilmente continua usando. Ficou uma ostentação, porque com a nova leva de ricos ninguém sabe a hora de usar a jóia certa. Só estão mostrando”. Dizia isso, assim como também dizia: “Não me levo a sério”.

35 ideias sobre “A partida da Primeira e Única, Carmen, o grande mito da sociedade brasileira

  1. Assisti entrevistas dela no Youtube e é impressionante como ela era uma pessoa bem mais culta, sensível e pé no chão, do que aquela imagem que a imprensa traçou dela, a caricatura a da socialite. Inclusive sublinhando que não se considerava melhor que ninguém. De fato uma pessoa inigualável. RIP Carmen.

  2. Hilde querida , que linda homenagem a sua amiga . Conseguiu passar a personalidade de uma mulher que poderia parecer fútil a quem não a conhecia mas que na realidade era somente feliz . Meu carinho a você sempre . Sei o quanto você é fiel aos seus amigos . Giovanna Lind

  3. Querida Hilde, venho aqui, mais uma vez, lhe agradecer e parabenizar por tão belo texto. A qualidade literária de suas crônicas é tão superior que me permita aqui sugerir que você faça uma compilação e a transforme em um livro.
    A biografia acima de Carmem Mayrink Veiga , permite ao leitor uma total compreensão do que foi uma era em nossa sociedade, como Carmem pontificou nesse contexto e como se pode traduzir em prosa toda a emoção de uma amizade de cinquenta anos
    Parabéns Hilde!
    Viva Carmem Mayrink Veiga!

  4. Emocionante, justo e oportuno esse belo e já esperado texto de Hildegard sobre a personalidade única que foi a Sra. Carmen, eternamente capotante, Mayrink Veiga! Parabéns!!

    C. Thiago de Menezes, pres. FALASP

  5. Durante a leitura do comovente depoimento da Hildegard Angel, duas coisas me sensibilizaram: 1) sua sólida amizade com Carmen Mayrink, e 2) o grande sofrimento pelo qual Carmen passou em seus últimos anos. Neste sentido, e por considerar que a informação é uma arma poderosa para o combate ao sofrimento humano, deixo aqui um link produzido para o público leigo acerca da paraparesia espástica tropical, moléstia que acometeu nossa estimada senhora:

    http://www.msdmanuals.com/pt-br/casa/dist%C3%BArbios-cerebrais,-da-medula-espinal-e-dos-nervos/doen%C3%A7as-da-medula-espinhal/paraparesia-esp%C3%A1stica-tropical-mielopatia-associada-a-htlv-1

    A leitura deste material – ou de qualquer outro sobre o assunto – evidencia com clareza que bastam alguns cuidados MUITO simples para evitar o contágio com o vírus HTLV-1, responsável por esta moléstia tão agressiva. Impossível não pensar que a sra. Carmen poderia ter tido uma qualidade de vida muito melhor em sua maturidade e velhice.

    Parabéns a Hilde pelo lúcido depoimento,

    Ricardo Botelho

  6. Um mito! Viveu uma vida que muitos mortais mesmo com dinheiro nunca chegarão ao patamar dela. Uma mulher cultissima que sabia se impor diante dos demais e sua presença jamais passava desapercebida. Hoje em dia qualquer um pode viver em sociedade, basta ter dinheiro. Porém antigamente precisava além de dinheiro, ter cultura e educação para viver a vida que ela viveu. Realmente uma diva!

  7. Texto magnífico, o seu, Hilde !!!!!!
    Para um personagem tão magnífico quanto …
    EMOCIONANTE, minha amiga querida !!!!
    E VIVA CARMEN, O MITO !!!!!
    Bjs !!!

  8. Lendo um blog me deparei com este comentário sobre a Carmem:

    “Em tempos idos, quando o ar condicionado em carros não era imprescindível e as janelas desses ficavam abertas para o vento, uma tarde eu caminhava por Copacabana pronto para atravessar a Rua Prado Júnior. Eis que o sinal abriu para mim, mas um incrível Oldsmobile 1958 nas cores verde e creme parou diante da faixa de pedestres e atraiu minha atenção. E, conduzindo a máquina, uma mulher lindíssima, nariz de Cleópatra, tirou as mãos do volante e levou-as aos cabelos negros e volumosos, sacudindo-os no ar para se refrescar. Foi cinema puro e a estrela era Carmem.”
    Ou seja Carmem era uma diva,e foi p eternidade como uma diva.

  9. Não é possível conhecer todas as pessoas nesse mundo, principalmente quando nossos caminhos nunca se encontraram, mas ler esse texto tão intenso me faz pensar e muito. Pensar nos valores que não vemos mais serem exaltados e praticados. As palavras delicadas, garimpadas por sua sensibilidade, a atenção dedicada ao longo da passagem do tempo, as reviravoltas do destino, a alegria da amizade compartilhada em momentos de riso ou de apreensão. Tudo muito elegante, tudo muito humano. Parabéns ! Pelo prazer de ter sido apresentado a um texto tão emocionante assinado por você.

  10. Ok Hilde
    Você já honrou Carmen Mayrink Veiga, a belíssima e refinada dama que se foi.
    Agora é necessário fazer um contraste.
    Fale-nos de Carmem Lúcia, aquela coisa horrorosa e repugnante que preside o STF. A universidade em que ela lecionava foi invadida e aquela mocreia não deu um pio.

  11. Parabéns pelo texto, querida Hilde. Uma linda homenagem à sua amiga. Palavras singelas, delicadas, amorosas. Através das suas observações você nos revelou com perfeição a personalidade dessa grande personagem da vida brasileira. E as fotos são lindas.

  12. Só a competência de uma grande jornalista e a sensibilidade de uma mulher admirável para transmitir em um texto tanta emoção. Partiu Carmen, mas fica sua bela e fascinante histó.ria

  13. Uma lacuna,nunca vai existir uma mulher como CARMEN.Como vc bem escreveu primeira e unica.Que os anjos celestiais a recebam junto a
    DEUS,a eterna CARMEN,a sociedade brasileira e em especial a sociedade carioca,está de luto,perdemos esta grande mulher que é a essência unica do glamour.É com muita tristeza e dor que recebi a noticia da morte de carmen,como eu inúmeros pessoas amavam e admiravam CARMEN.
    ZIL OLIVEIRA -SÃO LUIS DO MARANHAO

  14. Que texto lindo e comovente, ao ler este texto podemos imaginar como num filme a trajetória de vida da Carmem Mayrink Veiga, o final do texto é de emocionar! Ela cumpriu a sua missão, siga em paz.

  15. Estava há dias , esperando o texto seu sobre Carmem. Essa espera valeu muito a pena; que maravilha ! Você foi um anjo também nos últimos anos de Carmem; certamente , ela , lá de cima, ficou feliz com sua linda homenagem…

      • Não há nada de indecoroso pedir fotos de um velório de uma pessoa querida e relevante. Todos nós que a admiramos gostaríamos de estar presente para a última homenagem. Qual o problema? Se assim fosse , não se publicariam fotos de funerais de reis, rainhas, imperadores e czares. R.I.P Carmen I e Ùnica!

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