A Covid-19 leva Lourdes Catão, última diva dos anos dourados ‘na ativa’

Lourdes Catão, no jardim de seu apartamento, no Edifício Biarritz (Foto de Sebastião Marinho)

Lourdes e Alvaro Catão, anos dourados

Hildegard Angel

A Covid-19 acaba de dar um amargo golpe na alta sociedade brasileira. Morreu, vítima da doença, a diva social Lourdes Catão, aos 93 anos. E ela não estava mesmo fazendo projetos de partir. Dias antes de ser hospitalizada, combinamos ao telefone um almoço em minha casa, depois da epidemia, para reencontrar as amigas. Ela não fazia planos de ficar doente. Falou-me: “Estou aqui bem quietinha, isolada. Eu não quero ir para o hospital”. E todos os cuidados foram tomados nesse sentido. Sequer delivery era pedido, para Lourdes não correr risco de se infectar. O jornal também não entrava na casa, pelo mesmo motivo. A única presença externa eram as duas acompanhantes, que se revezavam a cada dois dias. Ela sentia falta das amigas, que, também em isolamento, não podiam ir vê-la.

Lourdes jamais aposentou o cetro da elegância. Era vaidosa. Em qualquer momento, em casa, em qualquer lugar, estava sempre impecável, penteada, com arco ou fita nos cabelos, usando colar, anéis – e ela ultimamente exibia uma grande safira no dedo, e dizia: “Este anel foi da minha avó”.

Legítima representante da época dourada, não do Brasil, do mundo. Ao lado de Thereza de Souza Campos, compôs o par das Mais Elegantes. Ainda viva, Thereza abdicou do título de “10 Mais”. Talvez porque tenha adquirido outro título, o de princesa, por seu casamento com sua alteza imperial, o príncipe dom João de Orléans e Bragança, e talvez porque não seja tão vaidosa e preocupada com a aparência quanto Lourdes. Não, não incluo Carmen Mayrink Veiga junto às duas, apesar de várias reportagens fazerem isso. Havia uma pequena diferença de idade entre elas – Carmen era um pouco mais jovem – e trajetórias sociais diversas.

Lourdes era um escândalo de bonita. Vê-la entrar num daqueles restaurantes da moda de Nova York, como o La Grenouille ou o Caravelle, era sempre um acontecimento. As mesas silenciavam à visão da loura, quase platinum, cabelos em ondas e bem tratados, envolta em peles ou nalgum tailleur, que poderia estar numa vitrine da Bergdorf Goodman ou da Lord & Taylor. Ela sabia o que era qualidade.

O segredo de Lourdes foi sua enorme capacidade de se reinventar. Quanto seu casamento com Álvaro Catão terminou, ela se mudou para Nova York, com breve passagem por Paris, onde teve um namorado, e se tornou uma decoradora bem sucedida. Seu “abre-te Sésamo” profissional foram as boas relações sociais, como Beatriz Patiño, que lhe entregou o apartamento de Park Avenue para decorar. E vieram outros trabalhos, e mais outros. Lourdes se firmou também nos negócios imobiliários em Nova York. Comprava o imóvel, reformava, decorava, e vendia com lucro. Sua melhor credencial era seu próprio apartamento em Manhattan, ou a casa de Connecticut.

Sempre morou bem. A casa da Urca era um luxo, e quem quiser conferir a sua fachada neoclássica, o imóvel ainda está lá intocado, depois de ter sido vendido. Em Santa Catarina, onde foi morar depois de retornar ao Brasil, fez um paraíso particular na Lagoa da Conceição, em Florianópolis, para onde levava as amigas queridas do Rio de Janeiro, que retornavam embasbacadas diante do cenário montado por ela, cercado de jardins, flores, arvoredo.

Quando morreu Lucia Stone, viúva do diretor da Motion Pictures, Harry Stone, Lourdes não perdeu tempo. Lucia morava num dos mais emblemáticos e cobiçados endereços do Rio, o Edifício Biarritz, na Praia do Flamengo. Seu apartamento térreo tinha direito ao uso do jardim ao fundo, com fontes e esculturas Art-Déco, topiarias, paisagismo francês clássico muito bonito, onde os Stone deram festas memoráveis na cidade. Lourdes pediu ajuda à irmã, Helena Gondim, que telefonou fazendo uma proposta de compra do imóvel para a herdeira e sobrinha de Lucia Stone, Loreta Burlamaqui. Venda imediatamente fechada. Quando os outros candidatos à compra abriram o olho, as chaves já estavam com Lourdes, que fez do duplex uma joia preciosa, com móveis ingleses, chinoiserie, ares de refinamento e até cheiro de Central Park South, New York.

Com a morte de Helena, Lourdes passou a editar o livro Sociedade Brasileira, iniciativa de décadas da irmã. Coube à Lourdes, filha pródiga que retornava ao cenário social, passar a ditar “quem era quem” na sociedade. O livro era um catálogo exclusivo, um clube fechado, em que ser verbete significava passe livre para a vida em sociedade, praticamente uma condecoração. Depois de três edições, ela interrompeu a publicação. E isso foi para sempre. Não tinha temperamento para sofrer tanta pressão dos que, a todo custo, desejavam ingressar naquelas páginas.

No apartamento do Biarritz, e naquele jardim, ela passou a receber para jantares e almoços, sempre preparados pela própria cozinheira, e disso ela se orgulhava, o que evidenciava seus requintes de grande anfitriã. Sim, Lourdes foi da geração de mulheres que se destacavam por saber receber com classe, as melhores louças, pratas, cristais, o requinte de um menu bem elaborado, e bastante pessoal. Até os arranjos de flores eram dela.

As amigas de Lourdes completavam o cenário. A verdadeira “aristocracia social”. Na minha cabeça revejo, lado a lado, naqueles sofás de damasco, poltronas de veludo, Maria Thereza Williams, Thereza Muniz, Thereza Castello Branco, Thereza de Souza Campos, Therezinha Noronha – as Therezas com H, chancelas de uma época em que tudo era, foi e sempre será elegância.

A última vez em que as amigas de Lourdes foram reunidas foi dia 12 de março, aniversário dela. Naquela data, iniciava-se a quarentena. Sua filha, Bebel Klabin, promoveu um almoço em sua casa de tijolos vermelhos, no Cosme Velho, pelos 93 anos de Lourdes. Foi tudo perfeito. Nós nos cumprimentamos encostando os cotovelos, não mais apertos de mãos nem beijocas. Havia uma orquestra de chorinho, que, a horas tantas, fez algumas de nós dançarem. Lugares marcados à mesa, Lourdes exultante à cabeceira. Jogo americano grifado por Lygia Mattos e bolo de aniversário, enfeitado com miosótis, de Regina Rodrigues, a boleira que marca RR em seus bolos e docinhos. Não faltou, à sobremesa, o discurso da aniversariante, declarando felicidade pelos filhos sensacionais que teve, afirmando não guardar arrependimentos de qualquer espécie – e concluindo com um brinde à Bebel, e a frase: “Minha filha, eu amo muito você!”.

Bebel retribuiu: “Mamãe, você foi o grande exemplo de minha vida, que eu procurei sempre seguir”. Aplausos.  A grande revelação da tarde foi o anúncio, por Bebel, de que sua mãe trocaria o duplex do Biarritz por um apartamento “sem escada” em Ipanema. Assim, Lourdes ficaria mais confortável, Bebel mais descansada, e o Biarritz perderia sua diva.

Sabíamos que Lourdes não desejava abandonar sua “obra prima”, que seu desejo era morar ali naquele cenário para sempre. Mas ela jamais contrariaria a filha. Nem precisou. O destino se encarregou de atender ao seu último desejo.

PS: Nesses últimos dias, o coronavírus levou outra grande dama da sociedade dos anos 50/60, grande dama mesmo, Gilda Saavedra, viúva do Barão de Saavedra, linda e refinada, padrão das mulheres perfeitas da época, morreu no dia em que completava 100 anos. A Covid-19 está fazendo um estrago na memória social brasileira.

 

Uma ideia sobre “A Covid-19 leva Lourdes Catão, última diva dos anos dourados ‘na ativa’

  1. Boa tarde, Hilde.

    Depois do sucesso do leilão de parte do acervo da inesquecível Lourdes, evidenciando o bom gosto e olhar para o belo da decoradora, nos presenteie, por gentileza, com mais uma crônica sobre Lourdes Catão.
    Afinal, ninguém melhor do que você, com toda a sua capacidade jornalística, para descrever pessoas e momentos, evidenciando e registrando os melhores detalhes. Será um deleite e um sopro de tranquilidade, mesmo que momentaneamente, em um ano tão conturbado nos mais diversos sentidos.
    Obrigado.

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